12 de junho de 2017

"Só me falaram: 'Sinto muito, senhora'", diz mãe de soldado morto em treinamento no Exército

Diego Toledo
Colaboração para o UOL, em São Paulo

Em um intervalo de menos de um mês, duas atividades de treinamento do Exército terminaram com um saldo de quatro militares mortos.
Para as famílias das vítimas, a dor da perda é acompanhada pela falta de informação sobre as circunstâncias em que as mortes aconteceram.
"Até hoje o Exército se calou. Por diversas vezes, eu tive de ir lá para tratar dos papéis do meu filho e, em nenhuma das vezes, eles me falaram o
motivo ou as circunstâncias da morte dele. Só me falaram: 'Sinto muito, senhora'", protesta a cabeleireira Sandra da Costa Ferreira, 40, mãe do
soldado Victor, 18, que morreu afogado em um lago, durante um exercício de orientação, em um terreno militar em Barueri, na Grande São Paulo,
no final de abril.
Victor estava com outros três soldados durante a atividade. Os quatro entraram no lago, que, segundo o Exército, não estava na rota do
treinamento. Apenas um deles sabia nadar e conseguiu sobreviver.
Os outros dois, os soldados Wesley dos Santos e Jonathan Turella, ambos de 18 anos, também se afogaram e morreram.
Um inquérito policial militar foi aberto em 25 de abril, um dia após o acidente, para apurar os fatos que levaram às mortes e por que os soldados
entraram no lago. Após o prazo de 40 dias previsto para a conclusão da investigação, o Exército informou, em nota, que o inquérito já se encerrou e
foi encaminhado para análise pela assessoria jurídica da corporação. Após um parecer legal, deve seguir para o Ministério Público Militar. O
comunicado não informa prazos para que isso aconteça nem o teor das conclusões da investigação.
"A gente sabe que tem um inquérito, mas não recebemos nenhuma informação. Já se passaram os 40 dias, e o Exército não falou nada ainda. Eles
não falam nada desde o acontecido", diz Michelly Turella, 39, mãe de Jonathan.
Nove meses antes, ela havia perdido um outro filho, de 21 anos, que sofria de distrofia muscular e morreu após um infarto. "Hoje eu só estou de pé
por causa do meu filho menor, de 10 anos. Acho que, se eu não tivesse o meu pequeno, eu estaria morta, porque, em nove meses, eu enterrei dois filhos."
Além das dúvidas, Sandra e Michelly também reclamam da maneira como Victor e Jonathan diziam que eram tratados no pelotão em que serviam, o 21º DSup (Depósito de Suprimentos). Ambos se queixavam de sofrer xingamentos constantes dos superiores e de ter de realizar atividades físicas em condições precárias. Michelly diz que, poucas semanas antes de morrer, seu filho foi obrigado a realizar exercícios mesmo com um quadro de pneumonia viral e um atestado de três dias do médico do próprio quartel. "Ele dizia que os comandantes eram muito rígidos, muito rancorosos. Davam tapas na nuca e o chamavam de 'fraco' e 'lixo'", relata a mãe de Jonathan. "O meu filho ficava 'pagando' castigo o tempo todo, tinha de fazer exercícios excessivos, de chegar ao ponto de ter de correr quilômetros com sede, febre e dor no corpo. Só poderia parar se desmaiasse", afirma Sandra.
"Ele contava que levou um soco no estômago porque fez uma pergunta sobre o uniforme. Tinha que comer em menos de cinco minutos e tomar banho em oito segundos. E era sempre tratado como um nada, como ninguém."
Sandra da Costa Ferreira, mãe de soldado morto
Em nota, o Exército afirmou que as testemunhas envolvidas no incidente que causou a morte dos três soldados foram ouvidas durante a investigação do caso. O texto acrescenta que "todo treinamento militar pode causar desconforto físico e necessita de preparo técnico".
"A intensidade do treinamento é elevada gradualmente, respeitando a individualidade de cada indivíduo", acrescenta a nota. "No entanto, o treinamento militar não pode ser confundido com desrespeito à dignidade da pessoa humana. Eventuais casos de excesso são apurados no rigor da
lei."

Resistência x despreparo
"A profissão militar exige vigor físico, um fortalecimento psicológico e uma capacidade de conviver minimamente bem com pressões, fadiga, restrição de comida e de sono", diz o professor de relações internacionais Peterson Ferreira da Silva, pesquisador de políticas de defesa e projetos
de cooperação civil-­militar. "Nesses relatos de excessos, inclusive de assédio moral, o problema é a falta de um acompanhamento mais rigoroso desses casos em algumas unidades militares."
Para o advogado Francisco Lúcio França, diretor do grupo Tortura Nunca Mais (SP), há, no entanto, falhas mais graves. Na sua opinião, o grau de exigência dos treinamentos para recrutas é exagerado. "Eles precisam ser treinados para uma intervenção, tarefas básicas ou administrativas, mas
eles não vão para a selva. Quando tem uma operação especial, é de sargento para cima. São eles que precisam de um treinamento mais intenso."
Lúcio França foi advogado do casal de sargentos Laci de Araújo e Fernando de Alcântara, que travaram uma batalha judicial com o Exército após denunciarem maus ­tratos e prisões arbitrárias na corporação.
Em 2008, Alcântara lançou o livro "Soldados Não Choram", em que relata as barreiras para um gay nas Forças Armadas. 
No caso das mortes em Barueri, o diretor do grupo Tortura Nunca Mais aponta que faltou supervisão, planejamento e infraestrutura para a realização do treinamento no local.
"O que me parece que aconteceu ali foi um erro estratégico do comando. Eles teriam que fazer um estudo e acompanhar a atividade mais de perto", afirma o advogado. "Eles exigem um grau máximo de desgaste dos soldados e, quando eles pedem ajuda ou passam mal, continuam forçando essas pessoas a fazer aquilo porque é uma prova de virilidade e resistência. O que é um erro gravíssimo."

Críticas à falta de transparência
Poucas semanas depois do incidente em Barueri, um outro militar, o sargento Daniel Poczwardowski, 29, morreu em um treinamento no Batalhão de Infantaria de Selva, em Marabá, no Pará.
Outros quatro militares que participavam da atividade também passaram mal e tiveram que ser encaminhados a um hospital da região. Em áudios divulgados pela TV Liberal, afiliada local da Rede Globo, dois dos oficiais internados se queixaram de excessos no treinamento. Um deles disse que os seus gritos de dor durante a atividade foram ignorados e que só foi socorrido depois de desmaiar.
O outro afirma que esperava um treinamento mais técnico, menos exaustivo, já que o exercício deveria ter como foco o aprimoramento da pontaria.
O militar diz que perdeu 5 kg e ficou com o corpo inchado e as mãos cheias de hematomas.
A viúva de Poczwardowski, assim como as mães dos soldados mortos em Barueri, reclama da falta de transparência da investigação militar aberta após a morte de seu marido.
A técnica em enfermagem Irla Oliveira Fernandes, 32, diz que seu advogado foi impedido de acompanhar o inquérito depois de dar uma entrevista para a imprensa em que revelou as queixas de Poczwardowski e seus companheiros ao comportamento dos instrutores do treinamento militar.
"Hoje eu não sei nem o que levou o Daniel a morrer e nem por que ele morreu. A maior interessada na investigação sou eu, mas eu não posso acompanhar um inquérito em que os militares estão investigando os próprios militares, com as provas deles mesmos e as respostas deles mesmos",
diz Irla.
"Meu objetivo é só fazer com que a conduta deles mude para que isso não aconteça com mais ninguém."
Para o diretor do grupo Tortura Nunca Mais, os incidentes em Marabá e Barueri expõem um outro problema das investigações militares. "É a polícia do Exército quem investiga esses casos, e eles mesmos fazem a perícia. É uma coisa totalmente corporativista. Não é um negócio isento."
O Exército afirma que as informações a respeito da morte de Poczwardowski "só serão possíveis após o término do inquérito". Em nota, a corporação diz ainda que "não compactua a com castigos físicos ou quaisquer tipos de excessos e, tampouco, com desvios de conduta que firam a integridade de seus membros".
UOL/montedo.com

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