19 de dezembro de 2011

DOCUMENTOS SECRETOS DA MARINHA RELATAM AÇÕES DO CENIMAR DURANTE O REGIME MILITAR

Os nervos expostos da ditadura
Os documentos do serviço secreto da Marinha revelam como seus integrantes temiam represálias da esquerda, tentavam proteger torturadores e investigavam até ministros do regime militar

LEONEL ROCHA, EUMANO SILVA E LEANDRO LOYOLA
Criador do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1964, o general Golbery do Couto e Silva, anos mais tarde, passou a chamar de “monstro” o aparelho de espionagem e repressão que montou. O SNI ficava no topo de uma complexa estrutura de órgãos encarregados de combater as organizações de esquerda que se opunham ao regime militar (1964-1985). As mais de 2 mil páginas de documentos secretos do Centro de Informação da Marinha (Cenimar) obtidas por ÉPOCA dão razão a Golbery. O conteúdo desses arquivos mostra que o Cenimar se tornou um gigantesco aparato de conspirações e perseguição aos adversários do governo.
Um relatório escrito no fim de 1971 diz que, àquela altura, o arquivo do Cenimar guardava cerca de 330.000 prontuários acondicionados em 160 gavetas de aço. As fichas pessoais eram organizadas sem muito critério, como se o serviço secreto quisesse dominar o mundo. O cadastro incluía inimigos notórios da ditadura, vivos ou mortos, líderes do golpe de 1964, como o ex-presidente Castello Branco, e até personalidades estrangeiras, como o ex-presidente dos Estados Unidos John Kennedy, assassinado em 1963. Muita coisa estava distante do tema “segurança interna”, objetivo declarado do Cenimar. Muitas vezes, nem os chefes escapavam da bisbilhotagem.
Em 26 de abril de 1971, o agente identificado como PT-73 relatou um caso de abuso de autoridade perpetrado pelo então ministro da Marinha, almirante Adalberto de Barros Nunes. Ministro do governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Nunes era conhecido por ter sido amigo do sambista Almirante e de ter conhecido os compositores Noel Rosa e João de Barro. Segundo PT-73, no dia 13 de janeiro de 1971, Nunes usou o poder do cargo de ministro para internar a caseira de seu sítio em Itaipava, no Rio de Janeiro, Floripe Lopes, no Hospital Nossa Senhora da Glória, administrado pela Marinha. Após uma série de exames, diz o relato do agente, o médico Marcos Blanc mandou que fosse dada alta a Floripe. A assistente social Maria Elizabeth Teixeira telefonou à mulher do ministro, dona Maria, para comunicar o fato. O agente escreveu que dona Maria ficou “indignada com a maneira de falar da assistente social” e “com a alta de sua caseira”. Ao saber disso, o ministro Adalberto Nunes deu ordem para punir a assistente social, o médico e a enfermeira que atenderam Floripe. O médico foi condenado a oito dias de prisão. As punições dos militares não foram incluídas em seus registros de carreira. A ficha de internação de Floripe desapareceu do hospital. Tudo foi apagado para não deixar rastros. Mas o Cenimar soube.
A estrutura que fez de órgãos como o Cenimar tão poderosos começou a ser montada no fim da década de 1920. Mas a influência dos serviços de informação cresceu nos preparativos do golpe contra o governo do presidente João Goulart, derrubado pelos militares em 1964. A insubordinação da Marinha, fundamental na queda de Goulart, era alimentada desde 1962 dentro de seu serviço secreto. Numa investigação interna sobre o comportamento de um integrante do centro, um oficial do Cenimar fez um relatório que descrevia a conspiração. O texto afirma que o almirante Pedro Paulo de Araújo Suzano, ministro da Marinha de Goulart, tinha interesse em bloquear as atividades do Cenimar, definido pelo oficial como um “baluarte da ação anticomunista”, o que “contrariava os interesses do governo João Goulart”.
Depois da tomada de poder, o Cenimar aumentou a vigilância sobre os adversários. Um desses casos envolveu o então ex-deputado maranhense Renato Archer, cassado depois do golpe de 1964. Capitão de corveta da reserva, ele era odiado pelos militares por suas ligações com o ex-presidente Juscelino Kubitschek. No governo José Sarney (1985-1989), ele foi ministro da Ciência e Tecnologia. Archer foi preso em 1970. Na ocasião, os agentes estranharam o fato de ter sido encontrada na casa de Archer a ata de uma reunião de oficiais da Marinha, relacionada à compra de fragatas. Numa defesa escrita de próprio punho, Archer afirmou que teve acesso ao documento porque trabalhava como diretor da Anglo-Brasileira Comércio Ltda., empresa que representava o estaleiro inglês responsável por construir as tais fragatas. Archer afirmou que o documento provavelmente lhe foi passado pelo almirante da reserva Ângelo Nolasco, outro representante do estaleiro inglês durante a negociação com a Marinha.
Os vazamentos de informação eram um dos maiores temores da Marinha. Reconhecido como um órgão eficiente em infiltrações nas organizações de esquerda, o Cenimar se empenhava em não sofrer o mesmo tipo de ataque. Num relatório de 20 de agosto de 1970, um agente narrou uma tentativa de infiltração da esquerda no Cenimar. Os responsáveis pela iniciativa, segundo o relato, eram os médicos Almir Dutton Ferreira, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), e seu amigo Milton Nahon, da Dissidência do PCB. A pessoa preparada para se aproximar do Cenimar, diz o relatório, era Therezinha Marques Simões Monteiro, na época mulher de Nahon. Therezinha conhecia os capitães de corveta Almir Sarraceni e Luiz Alberto Inojosa de Albuquerque, ambos do Cenimar. Os nomes dos dois apareceram em papéis de Therezinha encontrados por agentes que a prenderam. Ela confirmou conhecer os dois oficiais, um deles desde a infância, e acrescentou à lista o capitão-tenente Franklin Storry. Therezinha foi alertada de que, se algo acontecesse aos homens do Cenimar, ela seria considerada responsável.
Quarenta anos depois, parece que a tentativa de infiltração não passava de paranoia do Cenimar. “Therezinha não era politizada, nunca foi militante”, afirma Milton Nahon, cirurgião plástico no Rio de Janeiro, hoje com 67 anos. Dutton Ferreira era militante ativo da VPR, mas Nahon diz que não estava engajado na luta armada. Os dois mantinham uma pequena clínica clandestina no Rio, onde tratavam de militantes feridos. “O instrumental cirúrgico era guardado na casa da Therezinha, onde eu morava”, diz Nahon. No início de 1970, ao saber da prisão de amigos, entre eles Almir, Nahon fugiu de navio para Israel. Therezinha não foi localizada por ÉPOCA.
O temor dos militares com as ações dos inimigos cresceu em 1970, quando organizações internacionais começaram a divulgar, fora do Brasil, denúncias de tortura e nomes de torturadores. Com a ameaça de identificação no exterior dos torturadores, os oficiais do Cenimar foram instados a sugerir, com “urgência”, medidas para proteger os acusados e seus familiares. Um dos oficiais que responderam ao pedido de sugestões foi o capitão de corveta Aldir Bellotti da Silva. Em seu texto, Bellotti tratou os colegas explicitamente como “torturadores” e disse que, apesar da preocupação com sua identificação, nada havia a ser feito.“Já não é de hoje que nomes de torturadores vêm sendo fartamente publicados na imprensa internacional e em órgãos clandestinos”, escreveu Bellotti. “Em que pese meu sentimento cristão de amor ao próximo (no caso, os torturadores), acho que a curto prazo somente se pode adotar a política do fato consumado.” O medo de represálias explica, em parte, por que o Cenimar tinha dificuldades de completar os quadros. Em 1971, 15 oficiais da Marinha foram sondados para integrar o Cenimar a partir do ano seguinte, mas nenhum aceitou o convite.
Ao mesmo tempo que se preocupava em espionar, o Cenimar mantinha um aparato burocrático para acompanhar detalhadamente cada uma de suas ações. Um documento mostra quantos “pedidos de busca”– solicitações encaminhadas ao centro – haviam sido recebidos e encaminhados pelo Cenimar em 1970. O mais produtivo dos oficiais do Cenimar foi o capitão Bellotti, que respondeu a 590 dos 2.008 pedidos de busca. A divisão de registro fez levantamento também de todos os assaltos nos Estados da Guanabara, de São Paulo e do Rio de Janeiro no segundo semestre de 1971, assim como de todos os carros, chapas, armas e explosivos roubados.
A Marinha primava pela organização de seus arquivos. Em 1971, o Cenimar construiu uma sala de microfilmagem. Em um relatório classificado como secreto, de 21 de março de 1974, o capitão de corveta Ronaldo Velloso Netto dos Reis traça um panorama da Operação Netuno, feita para converter documentos de papel em microfilmes. Apesar de pouco usados hoje, os microfilmes são valorizados porque podem durar mais de 100 anos. Em um relatório de 1972, o capitão Netto dos Reis se vangloriou de o Cenimar ter conseguido “o pulo do gato” na área da microfilmagem. “Adquirimos forte know-how, deixando de lado as grandes sofisticações que, às vezes, são lançadas pelos vendedores e que nada adiantam na prática”, afirmou. De acordo com o documento de Netto dos Reis, o arquivo do Cenimar, no dia 31 de dezembro de 1973, tinha 290 rolos de microfilmes, divididos em dez assuntos. Esse conjunto somava mais de 1,2 milhão de fotogramas dos 11.342 prontuários microfilmados.
Procurada por ÉPOCA, a Marinha afirmou não guardar “registros pertinentes” aos documentos obtidos pela reportagem. É importante lembrar que o Cenimar era um dos mais importantes órgãos de informação do regime militar, mas havia outros como o Centro de Informações do Exército, o Centro de Inteligência da Aeronáutica, o Serviço Nacional de Informações, os nove DOI-Codis espalhados pelo país, as Divisões de Informação dos ministérios civis e os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) dos Estados. Boa parte desse mar de informações coletadas num regime de arbítrio continua desconhecida.
ÉPOCA/EB/montedo.com