28 de julho de 2013

Uganda:quatorze anos depois, criança transformada em soldado volta para casa

Criança transformada em soldado por Kony volta para casa, em Uganda, 14 anos depois
DO GUARDIAN

Joseph Kony
Edward tinha apenas 13 anos quando foi sequestrado por rebeldes ugandenses e forçado a se tornar um soldado do grupo guerrilheiro LRA (Exército de Resistência do Senhor, em inglês). Ele sobreviveu à guerra de guerrilha mais longa da história moderna por ser um dos homens de confiança de Joseph Kony, o arquiteto-chefe da brutal insurgência.
Quatorze anos depois, com Kony foragido, Edward voltou à sua aldeia, tenso com a recepção que receberia após aterrorizar seu próprio povo.
Por mais de duas décadas, cerca de 30 mil crianças raptadas do norte do Uganda foram o combustível para o LRA. Kony, autointitulado místico com contatos diretos com uma série de espíritos, viu seu poder desabar depois que suas forças foram perseguidas em todo o Nilo e fora do país em 2006. Desde então, ele tem percorrido as florestas do leste central da África, com um bando de algumas centenas de crianças raptadas de países vizinhos.
Apesar de um punhado de ugandenses raptados já ter escapado, uma geração de crianças ficou traumatizada pela guerra.
Edward, agora um jovem magro de 27 anos, foi um dos que fugiu. Quando ele fugiu de Kony, em abril, passou tanto tempo no mato que esqueceu o que era um banco.
Por ter estado tão perto do chefe do LRA, sua história oferece um quadro, em primeira mão, da paranoia de um dos criminosos de guerra mais procurados do mundo.
"No meio da noite, os rebeldes vieram, e rodearam nossas casas", Edward disse. "Até então eu nunca tinha ouvido o som de um tiro."
Falando baixo, dedos entrelaçados em seu colo, Edward contou que o medo fez sua primeira morte mais fácil. "Se fizéssemos um trabalho ruim, [nosso comandante] poderia ter nos matado no lugar." Então, com a voz quase como um sussurro, Edward explicou como os sequestrados foram repetidamente forçados a matar outras crianças que tentavam escapar. "Tantas vezes isso aconteceu", disse.
"Eu sei [que ir para casa] não vai ser fácil. Algumas pessoas podem pensar..." Edward não terminou a frase e olhou a paisagem. Chegar em casa significa encarar uma década em que lutou contra seu próprio povo. Um vizinho sequestrado junto com ele foi forçado a matar seus pais.
No idioma de Edward, Acholi, as pessoas chamam "ajiji" o estresse pós-traumático. Significa algo que entra em seu espírito e faz você se comportar de maneira estranha. Ex-coroinha, Kony teve a capacidade de manipular a espiritualidade das pessoas.
Criança soldado de Kony
"Temos de dizer à comunidade, que se um [garoto repatriado] acorda gritando no meio da noite, ele não foi enfeitiçado por Kony, mas está apenas se lembrando de batalha", disse Charles Onekalit, um dos conselheiros da ONG Visão Mundial.
Edward, que ganhou o posto de sargento aos 16, disse que, para permanecer vivo, "aprendeu a manter a cabeça abaixada e fazer o que foi ordenado". Enquanto desprezava a maioria dos comandantes, ele acreditava que Kony era "uma pessoa piedosa". "Eles nos fizeram acreditar nisso."
Kony tinha tanta certeza sobre a poderosa teia que tecera em seu círculo íntimo que encorajou seus principais representantes a se encontrarem com suas famílias durante uma rodada de negociações de paz em 2006 no Sudão do Sul.
Quando a mãe angustiada e a irmã lhe imploraram para voltar para casa, Edward se recusou, dizendo que iria violar os códigos do exército.
"Quando estávamos saindo, ele sussurrou para mim, muito rapidamente: 'Eu vou voltar para casa um dia'", disse sua irmã Esther, cujo marido foi morto pelo LRA. "Eu disse à nossa mãe que ela não tinha perdido seu filho para sempre."
A gota d'água veio quando um Kony cada vez mais paranóico acusou seu assessor mais próximo, comandante direto de Edward, de dormir com mulheres reservadas a ele. Ele ordenou Edward e outros que golpeassem seu próprio comandante com machetes até a morte, e pendurassem o corpo como um aviso.
"Eu sabia que, se Kony poderia matar alguém ainda mais próximo dele do que eu, seria eu um dia", disse Edward. Ele e um amigo escaparam naquela noite
Quando o ônibus parou na aldeia de Edward, ecoaram uivos de alegria. Edward virou o rosto e apertou os polegares contra os olhos molhados. "Eu não sabia que tantas pessoas me amavam", disse ele, tentando se recompor. "Eu quero dizer a todos aqueles que ainda estão lutando mas matas que é OK voltar para casa."
Folha de São Paulo/montedo.com