12 de setembro de 2014

De que falamos quando falamos de heróis?

NE: que história!

William Angus: de que falamos quando falamos de heróis?
William Angus: de que falamos quando falamos de heróis?
Nuno Madureira
Não vale a pena procurar registos das proezas futebolísticas de William Angus, o Soldado Desconhecido desta semana. Apesar de duas temporadas passadas no Celtic Glasgow, entre 1912 e 1914, é duvidoso que este filho de um mineiro escocês, da pequena povoação de Carluke, se distinguisse em campo por algo mais do que a coragem. Por isso, o seu trajeto nos hoops ficou-se por aparições regulares na equipa secundária e apenas uma chamada à primeira equipa, antes de o seu contrato expirar sem ser renovado, no verão de 1914.
E, no entanto, Angus – um dos milhares de mineiros que no início do século XX procuraram vida melhor no futebol - desempenhou um papel mais importante do que parece na legitimação do desporto perante a sociedade britânica. Para o percebermos, teremos de desviar-nos por momentos da sua história particular e fixarmos o olhar no futebol de há cem anos, uma altura em que o profissionalismo começava a impor-se, e a paixão, nascida nas populações trabalhadoras das fábricas, conquistava adeptos através do crescimento do caminho de ferro.
Quando a Grã-Bretanha entra em guerra, em agosto de 1914, as provas de râguebi e críquete, de origem mais elitista e, por isso, amadoras, são imediatamente suspensas. O futebol, pelo contrário, mantém ativas as competições profissionais: há contratos que ligam os jogadores aos clubes, há orçamentos para cumprir e receitas de bilheteira para gerar. Por isso, o futebol contribui de forma modesta para o primeiro esforço de mobilização de tropas, que em meados de setembro se traduz em 500 mil novos voluntários.
«Num tempo em que a palavra herói é aplicada sem critério, 
William Angus ilustra o seu significado mais profundo»
É por esta altura que a opinião pública começa a virar-se contra o desporto profissional, como o ilustra este parágrafo de Arthur Conan Doyle, um dos escritores mais influentes da época: «Havia um tempo para tudo, mas agora só há para uma coisa, a guerra. Se o jogador de críquete tem um olhar preciso, que o use na mira de uma espingarda. Se o futebolista tem pernas fortes, que as aplique a marchar no campo de batalha», escreveu a 6 de setembro, num texto encomendado pelo Ministério da Propaganda. Os jornais faziam eco deste apelo, com editoriais comparando a recusa em alistar-se à colaboração com os alemães. Cartoons críticos, como este, obrigavam a optar entre o dinheiro ganho em campo e a honra a conquistar na batalha:
Aos poucos, o futebol rendeu-se e cada vez mais jogadores de primeiro plano trocaram as botas pelas baionetas. Em dezembro, no regimento do Middlesex, nascia o 17º batalhão, alcunhado de Batalhão do Futebol. Em teoria, seria formado por futebolistas voluntários – na prática, destinava-se a encorajar adeptos a alistarem-se, com o bónus de partilharem camaratas com os seus ídolos da vida civil. Em março de 1915, eram já 122 os futebolistas profissionais registados no Batalhão de Futebol
William Angus não precisou de esperar tanto tempo: logo nos primeiras semanas de agosto, o homem que, aos 26 anos, tinha acabado de trocar o mítico equipamento do Celtic pelas braçadeira de capitão do modesto Wishaw Thistle, juntou-se ao batalhão de Infantaria de Highland Light. Nunca mais voltaria a jogar futebol.

«A mais corajosa ação da história»
Em janeiro de 1915, o batalhão foi transferido para a Força Expedicionária dos Royal Scots, que combatia os alemães no norte de França. Com Angus seguiu um seu amigo de infância, James Martin, também originário de Carluke, e entretanto promovido a tenente. Em território francês, por entre trincheiras e gaseamentos, a força britânica vai obrigando o exército alemão a recuar. Mas, em junho, chega-se a um impasse, nos arredores da povoação de Givenchy La Bassé: a posição alemã parece inacessível e durante vários dias os combatentes olham-se nos olhos, separados por uma terra de ninguém com menos de 70 metros.
Na madrugada de 11 para 12 de junho, Angus vê o seu amigo, o tenente Martin, liderar um raide suicida, por terreno descoberto, para tentar desalojar os alemães. Estes respondem fazendo rebentar uma mina que dizima o pelotão. Quando o dia nasce, os britânicos entrincheirados conseguem ver, por entre os mortos, James Martin, ferido e abandonado, em território controlado pelo inimigo. Passam-se horas de indecisão, entrecortados pelos gemidos do tenente. Quando este pede um pouco de água aos alemães, do outro lado da trincheira, estes respondem fazendo rebentar uma granada a poucos metros dele.
É demasiado para William Angus que, indignado, se oferece ao brigadeiro Lawford para ir resgatar o amigo. À primeira recusa, insiste: «Se vamos morrer, não importa que seja agora ou mais tarde. Prefiro morrer agora por algo em que acredito», argumenta. Lawford cede. Angus pede uma corda e começa a rastejar os 50 metros que o separam de Martin. Sem ser visto pelos alemães, chega ao pé do amigo, dá-lhe água e um golo de brandy, para suportar as dores, e amarra-lhe a corda à cintura. Depois, tenta arrastá-lo de volta, para os 50 metros mais longos da sua vida.
Os alemães detetam-no, e com Martin nos braços, Angus é um alvo fácil. É várias vezes atingido, mas, sempre cobrindo o corpo do amigo com o seu, consegue encurtar distância até as forças britânicas poderem puxar o tenente para a trincheira. Depois, Angus continua a rastejar e deixa-se cair na trincheira, ensopado em sangue. Entre tiros e estilhaços, os médicos contam mais de 40 ferimentos, nenhum deles fatal. Ainda assim, o pé direito de Angus, desfeito pelas balas, nunca mais lhe permitirá correr. E, mais grave ainda, nada poderá ser feito para salvar o seu olho esquerdo.
O raide de Angus, descrito pelo seu comandante, o tenente-coronel Gemmill como «a mais corajosa ação na história do Exército Britânico» tornou-o candidato óbvio à mais alta distinção militar da Grã-Bretanha, a Victoria Cross – atribuída pela primeira vez a um soldado que tinha entrado no exército como futebolista profissional.

O regresso de um herói
Enquanto William Angus convalescia num hospital de campanha, a sua história tornava-se célebre na Grã-Bretanha, ajudando a valorizar o esforço de guerra e a limpar a imagem dos futebolistas profissionais. «Num tempo em que a palavra herói é aplicada sem critério, William Angus ilustra o seu significado mais profundo», escreveu-se num editorial da época. A 30 de agosto, o rei, George V, tornou essa opinião oficial, entregando-lhe a Victoria Cross e detendo-se longos minutos a conversar em público e a felicitá-lo pela bravura.
No dia seguinte, Angus, com uma pala no olho esquerdo, voltou à Escócia, onde foi recebido com as honras que este filme de época documenta

Não há, infelizmente, o filme dos momentos em que William Angus regressou aos estádios, para a ovação que lhe escapou enquanto futebolista limitado. Mas há a fotografia que encima este texto, que o mostra a entrar em campo no Celtic Park. É o início de setembro e o futebol escocês veste traje de gala em honra do seu herói. Jogam-se as meias-finais de uma competição designada por Glasgow Cup. Já sem a pala no olho, mas com a bengala que o acompanhará o resto da vida, Angus pisa a relva, amparado pelo presidente do Celtic, James Kelly, e pelo seu treinador, William Maley. Nessa mesma tarde, o ex-jogador do Celtic terá honra idêntica em casa do rival, Rangers. Por uma vez, os dois extremos do Old Firm unem-se em simultâneo no aplauso a um herói. Um herói com todas as letras, dos primeiros que o futebol pode reclamar como seu. Até morrer de causas naturais, em 1959, Angus nunca deixou o cargo de presidente do Carluke Rovers. Nem de ser aplaudido de cada vez que entrava num estádio.
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