17 de novembro de 2014

O muro na cabeça

Há razões políticas e históricas para se desconfiar do conceito de hegemonia
  
Fernando Gabeira
O Muro de Berlim caiu há 25 anos. Foi um marco simbólico da entrada no século XXI. Durante as comemorações de agora, ouvi, de novo, a expressão “muro na cabeça”. No caso da Alemanha, a expressão era uma forma de nomear resistência à integração do país e preconceitos que sobreviveram à queda material do muro. Aqui no Brasil, uso em outro sentido: o muro ainda está na cabeça nostálgica dos líderes do PT que lançaram uma nota, afirmando seu desejo de conquistar a hegemonia na sociedade brasileira.
O conceito de hegemonia é atribuído ao filósofo italiano Antônio Gramsci. Ele defendia que o comunismo deveria se impor através de uma grande mudança cultural, mais poderosa que a simples tomada do poder. Por mais inadequadas que sejam para nossa época, as ideias de Gramsci foram uma saída para o Partido Comunista italiano. Um dos seus frutos é o conceito de compromisso histórico entre o PCI e a democracia cristã.
As ideias de Gramsci tiveram uma influência na formulação do eurocomunismo, que precisava de uma teoria para negar uma revolução de vanguarda que assume o poder pela força. Até certo ponto, o Partido Comunista italiano levou a sério as ideias de Gramsci, investindo, entre outros, na cultura, livraria, jornal, revista teórica, editora. Mas hoje, 25 anos depois da queda do muro de Berlim, o eurocomunismo foi soterrado com a derrocada do império soviético, a fragmentação da Iugoslávia.
E 25 depois, o PT ressuscita o conceito de hegemonia. Hegemonia para que visão mundo, cara- pálida? O conceito pode levar a inúmeros equívocos. Ele é vizinho da onipotência. Contém o desejo do PT de ter a narrativa dominante para a nossa História. Como interpretar uma hegemonia que mascara os números e inaugura a contabilidade criativa? Esse dissolver dos dados reais na ilusão ideológica é um sinal vermelho que se acende na fantasia hegemônica. O verso de Cazuza é o melhor antídoto: sua piscina está cheia de ratos, e suas ideias não correspondem aos fatos.
Há razões políticas e históricas para se desconfiar do conceito de hegemonia. 
No Brasil de hoje, ele é adotado pelo partido no poder há 12 anos.
Só um muro na cabeça nos fará esquecer os anos 1930 na Rússia, quando a fome rondava no horizonte, e Lysenko fez suas experiências revolucionárias na agricultura. Falseou os resultados e decretou que a genética era uma ciência burguesa decadente. Muitos cientistas foram executados pelo stalinismo porque serem contrários à manipulação ideológica de Lysenko. Nesse caso dramático, a ideologia não se contentou em driblar a aritmética, como o PT, mas invadiu o campo da ciência e condenou à morte quem a contestava com base teórica e prática.
Depois dos exercícios desvairados da hegemonia política e da versão mais branda do comunismo europeu, que valor pode ter esse conceito numa sociedade plural, em que a liberdade e espaço individual cresceram de forma acentuada?
Há razões políticas e históricas para se desconfiar do conceito de hegemonia. No Brasil de hoje, ele é adotado pelo partido no poder há 12 anos. Se estivesse no Congresso e o PT me propusesse uma tarefa comum e necessária, responderia: a única condição é de que vocês deixem o chapéu hegemônico lá na chapelaria da entrada. Ninguém é dono da verdade.
Vamos dar uma volta pelo conceito. O PT fez campanha eleitoral com uma política econômica. O partido atribuía ao adversário uma série de medidas de contenção de despesas que terá de adotar. O candidato derrotado poderia reclamar para si a hegemonia real: não importa que candidato vença, minha visão terá de ser adotada, logo é hegemônica. Mas seria pretensioso. O caminho não é esse. O fracasso da política econômica é reconhecido por teóricos de vários horizontes e, aos poucos, forma-se um consenso sobre o que fazer para sair da crise.
O PT está numa encruzilhada. Ou avança num caminho que não dá mais pé e afunda a economia, ou aproveita o consenso que se forma e muda o rumo. Se o objetivo é apenas se manter no poder, é possível, historicamente, alongar o erro. Os bolivarianos seguem no poder na Venezuela, apesar da catastrófica performance econômica. Os irmãos Castro ainda dominam uma Cuba empobrecida.
De Gramsci a Bolívar, a visão de hegemonia ganha uma nova forma na América Latina: dobrar o Congresso, ter a Justiça nas mãos, e torturar opositores na Venezuela, como denunciou o relatório da ONU. Essa hegemonia, irmão, só na porrada: é uma simples tática de se perpetuar no poder.
Quando descobriu sua decadência nas metrópoles, o PT inventa a palavra-chave para dar a volta por cima. A saída é buscar a hegemonia, para que todos passem a ver o mundo como nós desejamos que vejam. Onde estão essas ideias maravilhosas que vão nos arrebatar, revelando o verdadeiro sentido da História? Como elas não existem, hegemonia na verdade é apenas uma palavra na nota do PT. Se fosse o redator, escolheria Shazam ou Abracadabra. Depois de tantos anos da queda do Muro real, o melhor é tentar a magia.
O Globo/montedo.com