8 de novembro de 2014

Revisão da Lei da Anistia: o passado cabe aos historiadores, não aos Tribunais.

"Por mais nobre que seja a intenção de julgar os torturadores, por mais que sejam moralmente reprováveis as condutas e por mais dolorido que seja o sentimento de impunidade diante da liberdade dos mesmos, neste caso, é forçoso reconhecer que não há base jurídica para puni-los."

Rodrigo Mezzomo*
Semana passada o magistrado da 4.ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro acolheu denúncia da promotoria em face de cinco militares, todos reformados, acusados da morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, durante o período militar. O desaparecimento de Paiva ocorreu em 1971, nas dependências do DOI (Destacamento de Operações de Informações), no bairro da Tijuca, na zona norte do Rio.
Em síntese, a denúncia se deu ao argumento de que a Lei de Anistia não estabeleceu perdão para condutas previstas no Código Penal. A Lei, neste caso, deveria ser interpretada “restritivamente“, principalmente quando “colide com a proteção de direitos fundamentais“. Segundo o juiz federal, os crimes são “contra a humanidade“. “Em relação aos fatos narrados na denúncia, não há o que se falar em extinção de punibilidade pela anistia“.
Ao admitir a ação criminal, entendeu o julgador pela inocorrência de prescrição do crime, apesar de passados mais de 43 anos. Lembra o magistrado que “Já incidia o princípio geral do direito internacional, acolhido como costume pela prática dos Estados e posteriormente por resoluções da ONU, de que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis“.
"O que é deletério nesses simulacros é transmutação de terroristas em heróis, ou seja, a versão burlesca de que tais indivíduos estavam lutando por democracia e liberdade. Trata-se de alquimia historicista! Em verdade, todas as organizações que partiram para a luta armada, urbana ou rural, tinham compromisso expresso com a implantação de uma “ditadura do proletariado” no Brasil."

Enquanto esse tipo de comportamento “revisionista” se atinha às tais inúmeras “Comissões da Verdade” e suas burlescas distorções históricas, o mal ainda era suportável. Entretanto, agora essa retífica do passado, ou seja, essa contrafação dos acontecimentos chega aos Tribunais, o que potencializa de modo geométrico o perigo.
Ao se revisitar o ocorrido de modo enviesado, com nítida intenção de se emendar eventos históricos, arriscada reavaliação interpretativa do sistema jurídico pode emergir. Nessa reformulação do ontem, podem os Tribunais sucumbir à ideologia. Se assim o fizerem, ou seja, se agirem como ortopedistas do passado, causarão mais mal que benefícios, mais injustiças que reparos. O ativismo judicial é prática crescente, porém, censurável.
Sob o manto de um discurso carregado de emoção (o que não combina com a técnica jurídica), a aceitação da Ação Penal pode trazer imensa, inesperada e negativa repercussão no que tange à segurança jurídica. Assim sendo, me parece que, agora, a questão não pode mais ser ignorada pelos que realmente defendem a liberdade.
As tais Comissões a que me referi há pouco, se transformaram em mecanismos de promoção pessoal e estão sendo instaladas em todos os âmbitos. Em breve, acredito, até no condomínio onde resido, no restaurante que frequento ou no jardim da infância da esquina serão instaladas comissões desta natureza. Elas estão por toda parte, revolvendo a história ao fluxo das ideologias, reescrevendo-a conforme melhor parece aos integrantes de tais Comissões, muitos dos quais, coincidentemente, são candidatos nas eleições que se avizinham.
Se investigam apenas os agentes do Estado, todavia, nada quanto aos crimes brutais cometidos pela esquerda, silêncio sepulcral em relação ao terrorismo das diversas organizações de guerrilha (Ação Libertadora Nacional, Ação Popular, Comando de Libertação Nacional, PCdoB, POLOP, VAR-Palmares, Vanguarda Popular Revolucionária e tantas outras).
O que é deletério nesses simulacros é transmutação de terroristas em heróis, ou seja, a versão burlesca de que tais indivíduos estavam lutando por democracia e liberdade. Trata-se de alquimia historicista! Em verdade, todas as organizações que partiram para a luta armada, urbana ou rural, tinham compromisso expresso com a implantação de uma “ditadura do proletariado” no Brasil.
A única divergência entre eles era o modelo a ser seguido, isto é, para alguns a URSS era o paradigma, para outros o modelo era a China ou Cuba. Mas todos, invariavelmente, queriam implantar uma ditadura comunista no Brasil; quanto a isso, não há dúvida.
Feita essa inflexão em relação as “Comissões da Verdade”, voltemos a decisão judicial em comento. Em 28 de agosto de 1979, o presidente João Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, a qual restou conhecida como “Lei da Anistia”, vez que instituiu o perdão para os todos que, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, haviam cometido crimes políticos ou conexos, bem como concedeu ampla anistia tiveram seus direitos políticos suspensos pelos famosos Atos Institucionais.
Os “movimentos sociais” (eufemismo para nos referimos às organizações esquerdistas) vêm reiteradamente defendendo a tese de que a Lei da Anistia não poderia valer para os torturadores que serviram ao Estado, mas apenas para os guerrilheiros. Em suma, a anistia se daria apenas em relação a um os lados do conflito, os esquerdistas, mas não os militares.
Segundo essa pitoresca interpretação, nenhum Estado tem o poder de anistiar a tortura, pois existem tratados internacionais que versam a respeito do tema e a reconhecem como crime. Além disso, o Brasil não estaria divorciado dos parâmetros mínimos de respeito aos chamados direitos humanos. Por fim, para que se possa construir o futuro precisaríamos ajustar contas com o passado.
Alega-se que o Brasil deve se adequar aos tratados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, dos quais é signatário. Neste debate é comum se dizer, ainda, que o Brasil é o único país que ainda não fez essa releitura jurídica do período ditatorial, pois vários países da América Latina revogaram suas Leis de Anistia. Tome-se a Argentina como exemplo.
Os argumentos são todos muito bons, todavia, juridicamente insustentáveis, sendo resultado apenas de uma crescente mentalidade esquerdizante que reina soberana em certas áreas da América Latina, região do mundo hostil à liberdade, à livre iniciativa e ao lucro.
Realmente procede a afirmação de que o Brasil está inserido em um contexto de tratados internacionais e é necessário respeitá-los. Os tratados assinados e ratificados pelo Brasil ingressam em nosso ordenamento jurídico e hão de ser observados e aplicados. Por força desse arcabouço legal é a tortura imprescritível, assim como o Brasil reconhece a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Todavia, tais argumentos, apesar de corretos, não bastam para que se autorize uma releitura parcial da Lei da Anistia, apta a anular o diploma normativo apenas no que se refere aos militares e demais agentes da repressão. Gostemos ou não, a Lei da Anistia vale para ambos os lados!
Salvo melhor juízo, o mencionado artigo 1º da Lei de Anistia conjuga o vocábulo “todos” com as expressões “cometeram crimes políticos ou conexos com estes” e, portanto, engloba ambos os lados do espectro daqueles tempos, assim como todas as condutas de natureza política praticadas pelos envolvidos.
"Os “movimentos sociais” (eufemismo para nos referimos às organizações esquerdistas) vêm reiteradamente defendendo a tese de que a Lei da Anistia não poderia valer para os torturadores que serviram ao Estado, mas apenas para os guerrilheiros. Em suma, a anistia se daria apenas em relação a um os lados do conflito, os esquerdistas, mas não os militares."

Em outros termos, a lei acolhe os e agentes da repressão em, em igual medida, os militantes de esquerda que sequestraram, assaltaram ou cometeram atentados, homicídios, justiçamentos e outras brutalidades. Se encontram nessa esteira vários militantes do PT, incluindo a presidente da República, a senhora Dilma Rousseff, além de muitos outros integrantes e ex-integrantes do governo, alguns deles hoje presos não por atentados e ações guerrilheiras, mas por protagonizarem o mais grave e vergonhoso episódio de corrupção do país, o Mensalão.
Ressalte-se, ainda, que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos foi adotada apenas em 1985 e entrou em vigor no dia 28 de fevereiro de 1987. Ela define os atos de tortura e os dá como ilegais; também declara quem pode ser processado enquanto torturador e dispõe claramente que “obedecer ordens” não será considerado como desculpa justificada para infringir tortura.
A Convenção salienta que nenhuma circunstância excepcional, nem mesmo tempos de guerra ou potencial periculosidade do prisioneiro, pode justificar o uso da tortura; também apresenta medidas legais disponíveis para as vítimas. Os Estados, ao assinarem a referida Convenção, concordam em adotar legislação nacional seguindo as diretrizes traçadas por esse tratado, transformando qualquer forma de tortura, sob qualquer circunstância, em ilegalidade. Por fim, adiciona-se o fato de que as partes celebrantes da Convenção concordam em incluir a tortura dentro da lista de crimes que concorrem à extradição.
O tratado é ótimo e aplaudo seus termos! Todavia, sua validade se dá ao futuro – ou seja, de 1987 em diante – e não para o passado! Não se legisla para detrás, sob pena de se ferir de morte pilares do Direito. Em outras palavras, o direito moderno, que se consagrou com as revoluções Americana e Francesa, iluminista portanto, consagra a anterioridade da lei como sustentáculo da segurança jurídica. A lei não pode retroagir, atingindo condutas passadas, não volta no tempo para punir atos em priscas eras.
Impossível não reconhecer que o tipo penal da “tortura” disposto no Tratado Interamericano é datado de 1987 e, cronologicamente, posterior à anistia concedida em 1979, ano de edição da Lei do Perdão.
Por conseguinte, mesmo que anulada a Lei de Anistia apenas para os militares (o que seria exótico), o ordenamento jurídico pátrio não admite que a tipificação do crime de tortura seja aplicável à ações antecedentes à sua própria instituição. O problema é de conflito da lei penal no tempo.
Por mais nobre que seja a intenção de julgar os torturadores, por mais que sejam moralmente reprováveis as condutas e por mais dolorido que seja o sentimento de impunidade diante da liberdade dos mesmos, neste caso, é forçoso reconhecer que não há base jurídica para puni-los.
Por fim, a discussão continua a ser juridicamente infrutífera caso a Lei de Anistia seja considerada inaplicável em relação às condutas previstas no Código Penal Brasileiro, como quer o Juiz da 4.ª Vara Federal Criminal, do Rio de Janeiro. A razão é uma só: por mais peculiar que seja a matriz hermenêutica escolhida, os anos se passaram a prescrição consumou-se. Não há matemática criativa que dê conta disso.
Acredito que mais vale pensarmos na construção do futuro desta Nação, que despendermos valiosa energia revolvendo o passado. Triste do país que não tem memória (e o Brasil padece de gravíssima amnésia), não obstante, esse acerto de contas cabe aos historiadores, não mais ao judiciário! Esse é um típico caso em que a moral está em descompasso com o direito positivado e, para a segurança jurídica de todos, é bom que assim o seja.
Por derradeiro, fica a pergunta: a prosperar a tese esposada, qual seja, a inaplicabilidade de anistia aos agentes do Estado, como a Corte interamericana deverá tratar os irmãos Castro e demais membros da longeva e sanguinária ditadura cubana?
*Advogado e Professor (Mackenzie/RJ). advogado (UFRJ), com pós-graduação em Filosofia Contemporânea pela PUC-RJ, Mestre em Direito (Mackenzie-SP) e Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires. Professor de Direito Processual Civil (Mackenzie-RJ).