2 de dezembro de 2014

150 anos depois, guerra ainda é ferida aberta no Paraguai

Terminado o conflito, a lembrança que os paraguaios, traumatizados, guardaram de Solano López foi a do déspota que arrastou o país para uma guerra catastrófica. 
A imagem oposta seria idealizada mais tarde, pelos ditadores que se sucederam em Assunção ao longo do século 20.
Guerra do Paraguai (Imagem: acervo digital da Biblioteca Nacional)
Para os paraguaios, não existe herói maior do que Francisco Solano López, o ditador que há exatos 150 anos invadiu o Brasil e deflagrou a Guerra do Paraguai (1864–1870).
As deferências se espalham pelo país. Solano López dá nome a cidade, rodovia, ruas, praças, hospitais, colégios. A principal via de Assunção é a Avenida Mariscal López (mariscal é o termo em espanhol para marechal). As homenagens vão de academia de tae-kwon-do a parque de diversões, de shopping center a time de futebol.
O rosto do ditador aparece na moeda de mil guaranis. Faz sucesso entre os adolescentes uma camiseta que, numa licença histórica, retrata o mariscal e Che Guevara lado a lado.
— Solano López se transformou numa religião cívica — resume Herib Caballero Campos, historiador da Universidade Nacional de Assunção e autor do livro El País Ocupado (sem edição em português).
É um culto contraditório. A herança de Solano López foram a derrota e a humilhação. O país ficou em ruínas, e pedaços do território foram perdidos para os países vencedores. Estima-se que 75% da população paraguaia tenha morrido nos cinco anos do conflito, seja no front, seja por fome e doenças. A Guerra do Paraguai é o mais sangrento conflito já visto na América Latina.
Guerra do Paraguai (Imagem: acervo digital da Biblioteca Nacional)
Crianças e anciãos
A guerra derivou das tensões diplomáticas na região do Rio da Prata. O Paraguai cultivava estreitas relações com o Uruguai, pois o comércio exterior dependia do porto de Montevidéu, mas mantinha um pé atrás em relação ao Brasil e à Argentina, vistos como expansionistas.
O frágil equilíbrio se rompe em outubro de 1864, quando o Brasil invade o Uruguai para intervir numa guerra civil local. O Paraguai protesta, temendo perder o aliado. Como dom Pedro II ignora as reclamações, o mariscal toma duas medidas radicais. Em novembro, confisca o navio brasileiro Marquês de Olinda, que navegava pelo Rio Paraguai, na altura de Assunção, rumo a Cuiabá. Em dezembro, manda suas tropas atacarem a província de Mato Grosso. A guerra está declarada.
No Uruguai, a guerra civil termina com a queda do governo pró-Paraguai. A Argentina se vê envolvida no jogo em abril de 1865, após tropas paraguaias invadirem a província de Corrientes. Em maio, o Brasil, a Argentina e o Uruguai formam a Tríplice Aliança, com o intuito de derrubar Solano López. No Paraguai, o conflito é chamado de Guerra da Tríplice Aliança.
O mariscal chega a obter vitórias no início, mas logo passa a colecionar derrotas. No final, ele se vê obrigado a convocar até crianças e anciãos às armas.
Guerra do Paraguai (Imagem: acervo digital da Biblioteca Nacional)
Documentos guardados no Arquivo do Senado mostram que os senadores do Império descreviam Solano López como “tirano” e o comparavam a Napoleão, o imperador francês que tentou dominar a Europa.
Numa sessão em 1868, um senador leu um documento em que o paraguaio aparecia como “marechal López”. Houve risos. Os senadores sabiam que ele fora alçado por decreto ao degrau mais alto da hierarquia militar. Preferiam chamá-lo de general.
Em janeiro de 1869, as tropas brasileiras ocupam Assunção. Em março de 1870, Solano López é descoberto nas montanhas do norte do país e morto na Batalha de Cerro Corá.
Terminado o conflito, a lembrança que os paraguaios, traumatizados, guardaram de Solano López foi a do déspota que arrastou o país para uma guerra catastrófica. A imagem oposta seria idealizada mais tarde, pelos ditadores que se sucederam em Assunção ao longo do século 20. O mariscal passou a ser incensado como um bravo líder que lutou por anos para defender os compatriotas e no final deu a vida em sacrifício.
— Era a ditadura moderna buscando se legitimar por meio da ditadura do passado. O ditador do momento se apresentava como a continuidade da luta de Solano López pela soberania do Paraguai — explica Thomas Whigham, historiador da Universidade da Geórgia (EUA) e autor de La Guerra de la Triple Alianza (sem edição em português).
Guerra do Paraguai (Imagem: acervo digital da Biblioteca Nacional)
Em 1936, a ditadura do coronel Rafael Franco inaugurou o Panteão Nacional dos Heróis e nele abrigou os restos mortais do mariscal. Em 1978, o general Alfredo Stroessner patrocinou as filmagens do épico Cerro Corá, que cristaliza a imagem de mártir. O cartaz promocional anuncia “uma história de amor, coragem e sacrifício”. O filme é exibido até hoje na TV.
A mesma visão romantizada chegou ao Brasil e à Argentina nos anos 1960. Argumentava-se que a guerra fora tramada por Londres, que supostamente não estava gostando de ver o Paraguai se industrializar sem depender das manufaturas inglesas. A Tríplice Aliança teria sido usada como marionete da Inglaterra.
A versão foi ensinada nas salas de aula brasileiras e argentinas até os anos 1990, quando os historiadores enfim se deram conta da ficção. Primeiro, o Paraguai não tinha indústria relevante. Depois, se a Inglaterra queria transformar o país em mercado consumidor, não fazia sentido incitar uma guerra que dizimaria a população. Por fim, as relações diplomáticas entre o Brasil e a Inglaterra estavam rompidas quando a guerra estourou, por causa da Questão Christie.
Hoje se entende que essa interpretação era uma forma sutil de atacar as ditaduras que, apoiadas pelos Estados Unidos, governaram o Brasil e a Argentina nos anos 1960 e 1970. Por um lado, atingia-se o imperialismo — o inglês e o americano. Por outro, criticavam-se os militares — tanto os que destroçaram o Paraguai quanto os que haviam tomado o poder em Brasília e Buenos Aires.
O Paraguai se tornou um país democrático em 1989, com a queda de Stroessner. No entanto, o culto a Solano López permanece. Uma explicação é o fato de os horrores do conflito estarem até hoje presentes na memória coletiva, como uma ferida não cicatrizada. A existência de um herói, ainda que irreal, serve de alento. Outra explicação é o fato de não ter havido liberdade acadêmica durante os 35 anos da ditadura Stroessner. Professores e pesquisadores que questionaram a versão oficial da história chegaram a ser presos e exilados.
Guerra do Paraguai (Imagem: acervo digital da Biblioteca Nacional)
Dia de Luto Nacional
Os alunos paraguaios sabem de cor o nome das batalhas. É provável que conheçam mais que os brasileiros o conde d’Eu — o marido da princesa Isabel foi comandante das tropas do Império. Entre as datas oficiais, estão o Dia dos Heróis Nacionais, 1º de março, quando Solano López foi morto, e o Dia das Crianças, 16 de agosto, quando centenas de meninos soldados morreram na Batalha de Acosta Ñu.
Em julho, um grupo de deputados apresentou um projeto de lei que, sendo aprovado, agregará mais uma data cívica ao calendário: o Dia de Luto Nacional pelo Genocídio do Povo Paraguaio, em 12 de agosto, quando se travou a Batalha de Piribebuy.
O ponto mais conhecido da batalha é o incêndio de um hospital que resultou na morte dos que estavam internados. Na versão paraguaia, o conde d’Eu ordenou o atentado. Para historiadores brasileiros, as chamas foram provocadas pelas faíscas das armas e se espalharam pelas paredes de madeira do hospital.
— Os paraguaios gostam de refletir sobre o passado. O mariscal López e a Guerra da Tríplice Aliança são temas onipresentes — afirma o deputado Ricardo González, um dos autores.
Na avaliação do historiador Ricardo Salles, autor de Guerra do Paraguai — Escravidão e cidadania na formação do Exército (Paz e Terra), a população paraguaia foi, sim, aniquilada, mas não se pode falar em genocídio:
— Ainda que tenham ocorrido degolas, fuzilamentos e outras barbaridades, o Brasil não atacou o Paraguai com o objetivo de exterminar a população. Foi uma guerra. E as mortes não podem ser creditadas integralmente ao Brasil. No final, Solano López recrutava qualquer um que tivesse entre 12 e 60 anos. Pessoas morreram de fome porque soldados dos dois lados confiscaram o gado e a colheita.
O historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita Guerra — Nova história da Guerra do Paraguai (Companhia das Letras), diz que é absurdo ver Solano López como herói:
— Ele sacrificou um país inteiro inutilmente. O herói foi o povo paraguaio, que acreditou na história de que a independência do país era ameaçada pelo Brasil e pela Argentina. O paraguaio atendeu a convocação para pegar em armas e lutou bravamente, mas pagou um preço alto demais.
FONTE: Agência Senado (texto de Ricardo Westin)
FOTOS: Acervo digital da Biblioteca Nacional – dossiê Guerra do Paraguai
FORÇAS TERRESTRES/montedo.com