3 de junho de 2017

“Já carrego a dor de ter perdido um filho. Não fará diferença ser preso ou não por denunciar o MP”, diz subtenente do Exército que perdeu um filho na tragédia da boate Kiss

O subtenente do Exército Sérgio da Silva, que perdeu um filho no incêndio da Boate Kiss e preside a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, vive uma situação absolutamente surreal: enquanto nenhum dos responsáveis pelas mortes está preso, ele corre o sério risco de ir parar na cadeia por denunciar o Ministério Público.




COMPORTAMENTO
A segunda tragédia da boate Kiss
Diante do que se vê na cidade de Santa Maria, Franz Kafka parece amador: os pais das vítimas é que estão sendo processados pelo Ministério Público, enquanto os responsáveis pelo incêndio que matou 242 jovens seguem impunes

Thais Skodowski
“Já carrego a dor de ter perdido um filho. Não fará diferença ser preso ou não por denunciar o MP” Sérgio da Silva, pai de Augusto
A Boate Kiss continua fazendo vítimas, mas o fogo no qual ela ardeu em 2013, matando queimados, pisoteados e sufocados 242 jovens, atende agora pelo nome de impunidade. Pior: num emaranhado de processos tão absurdos que fariam de Franz Kafka um amador, pais de mortos é que estão sendo processados, e isso porque reclamam que, ano após ano, ninguém é responsabilizado pela tragédia que traumatizou para sempre a cidade gaúcha de Santa Maria. Amargando um luto que se revela em dor, indignação e sentimento de impotência, Paulo Carvalho (pai de Rafael, morto aos 32 anos), afirmou à ISTOÉ: “Por meu filho, que não se acovardou naqueles momentos terríveis, nunca calarão a minha boca”. Quem quer calá-lo? Por mais incrível que possa parecer, justamente dois promotores que deveriam estar empenhados em aplicar a lei àqueles que sabiam que a boate funcionava em condições precárias de segurança. Imagine a angústia de perder um filho de forma tão doída e cruel e estúpida como são as mortes em todos os incêndios. Agora imagine essa angústia somada à revolta por responder a um processo somente porque se pleiteia que seja feita justiça. Assim vai vivendo e sofrendo Paulo, processado por calúnia e difamação pelos promotores Joel Dutra e Maurício Trevisan. Paulo declarou que há corporativismo e protecionismo no Ministério Público, e que a instituição não se moveu contra servidores municipais indiciados pela polícia. Para seus acusadores, no entanto, o arquivamento parcial do inquérito contra tais funcionários foi a decisão acertada. “É uma indecência”, revolta-se o pai, que aguarda sentença de um juiz em seu processo até o final desse mês.
“Eu me sinto marginalizado, sou execrado por uma instituição que deveria zelar pelo cidadão” Flávio Silva, pai de Andrielle“Eu me sinto marginalizado, sou execrado por uma instituição que deveria zelar pelo cidadão” Flávio Silva, pai de Andrielle





O fogo e o gelo
Ele não está sozinho nesse absurdo espetáculo no qual se vê representantes do MP, uma da mais fundamentais instituições na operação do direito, movendo processos pelo avesso. Sérgio da Silva e Flávio José Silva, presidente e vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, também estão sendo processados. Por quem? Pelo promotor Ricardo Lozza, que acompanhou um dos inquéritos sobre a boate Kiss, antes do incêndio, uma vez que ela estava denunciada por poluição sonora. A denúncia procedia, e o próprio Lozza foi quem chegou a tal conclusão. Ele denuncia Sérgio (pai de Augusto, 20 anos) e Flávio (pai de Andrielle, 22 anos) também por calúnia, responsabilizando-os pelos cartazes nos quais há sua foto acompanhada da frase: “o Ministério Público e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular”. Vamos supor que haja exagero nessa formulação. Pois bem: entender eventuais exageros que brotam de corações dilacerados como são os desses pais e mães pode não ser dever de ofício de um promotor, mas com certeza é sua obrigação humanitária, como membro da instituição. Pais e mães que viram seus filhos e filhas saírem alegres de casa naquela fatídica noite de 26 de janeiro e só foram revê-los deformados pelo fogo no gelo das mesas do Instituto Médico Legal. “O promotor Lozza tinha conhecimento de que a boate Kiss funcionava irregularmente desde 2009, mas nunca tomou nenhuma providência”, disse Flávio à ISTOÉ. “Eu me sinto marginalizado, sou execrado por uma instituição que deveria zelar pelo cidadão”.


48PELA INSTITUIÇÃO Os promotores Joel Dutra (à esq.) e Maurício Trevisan: “não existem corporativismo nem protecionismo no Ministério Público”

PELA INSTITUIÇÃO 

Os promotores Joel Dutra (esq.) e Maurício Trevisan: “não existem corporativismo nem protecionismo no Ministério Público” (Crédito:Fernanda Ramos/Agência RBS)
Já culparam até os mortos
O Ministério Público ofereceu um acordo aos pais processados que, de tão exigente, só podia mesmo não ser aceito. A proposta envolvia o pagamento de um salário mínimo, doações de cestas básicas a casas de caridade e retratação pública. Para aí? Não. Os pais teriam a obrigatoriedade de se apresentarem à Justiça a cada três meses, como se fossem egressos de uma penitenciária, em cumprimento de liberdade condicional. E isso ao longo de dois anos. “Para mim, que carrego a dor de ter perdido um filho, não fará diferença ser preso ou não por denunciar o MP”, diz Sérgio. Defendendo-se do processo movido por Lozza, os dois pais requisitaram à Justiça o direito à exceção da verdade (provar que estão falando a verdade), mas vinte desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul rejeitaram o pedido. Ou seja: é quase certo que o destino de Flávio e Sérgio já esteja selado: sentença condenatória. Igualmente por calúnia, acrescida de difamação e falsidade ideológica, está sendo acionada judicialmente Irá Marta Beuren (mãe de Silvio Bauren Junior). Quem a processa é o promotor aposentado João Marcos Adede y Castro, e seu filho, o advogado Ricardo Luís Schultz. Ela denunciou uma situação que achou, no mínimo, estranha: Ricardo tornou-se advogado da Kiss após a aposentadoria do pai, que atuava ainda na promotoria quando a boate começou a ser investigada pelo MP antes do incêndio, por outros motivos. Até agora respondem pela tragédia dois proprietários da casa e dois músicos da banda que se apresentava naquela noite (aguardam julgamento em liberdade). Pelo andar das coisas, porém, é capaz que sobre mesmo tudo para os pais que protestam contra a impunidade. Pouco a estranhar em um caso no qual até os próprios mortos já foram informalmente acusados de serem culpados, uma vez que estariam consumindo bebida alcoólica e por isso não conseguiram sair da boate. É surreal. E, como se disse, faz de Kafka a pessoa mais lógica do mundo.

O incêndio na Justiça
Nenhum dos indiciados na tragédia que matou 242 pessoas está preso
ISTO É/montedo.com