25 de junho de 2017

Primeiro caso de transexualidade das Forças Armadas brasileiras vira filme

Estreia no começo de 2018 o longa-metragem sobre o drama da cabo que se tornou o primeiro, e ainda único, caso de transexualidade das Forças Armadas do Brasil. A história real se passa na capital do país, onde ela servia e ainda mora.
O drama do primeiro cabo transexual das Forças Armadas do Brasil, Maria Luiza, será contado em um documentário feito pelo cineasta Marcelo Diaz
Renato Alves
Dez anos após a Justiça lhe dar o direito de pertencer ao sexo feminino, a vida de Maria Luiza da Silva ainda é marcada por preconceitos, humilhações. Aos 56 anos, ela ainda luta para voltar de onde a expulsaram por causa do gênero: a Aeronáutica. Venceu as batalhas jurídicas na primeira e segunda instâncias. Falta o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Enquanto isso, a cabo continua morando no Cruzeiro Novo, indo às missas aos domingos, praticando fotografia e pintura. A novidade é que a guerra sem fim da primeira transexual das Forças Armadas do Brasil vai ganhar os cinemas no primeiro semestre de 2018, por meio de um longa-metragem de uma hora e meia de duração.
Esse drama brasiliense vai ser contado em um filme dirigido por cineasta nascido e criado na capital. Formado da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Díaz ganhou notoriedade por realizar documentários sobre personagens da cidade, como o artista plástico Galeno e o mecânico José Perdiz, que transformou sua oficina em teatro. “O filme sobre a Maria Luzia é uma sequência da minha carreira, marcada por histórias de transformação. Maria Luiza tem uma história de busca de respeito, afeto e felicidade. Simples e profunda. O filme vai mostrar isso e tocar na questão de gênero nas Forças Armadas. Vai tocar muita gente”, resume o diretor de 42 anos, sobre o seu primeira longa-metragem.
Formado da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Díaz ganhou notoriedade por realizar documentários sobre personagens da cidade, como o artista plástico Galeno e o mecânico José Perdiz, que transformou sua oficina em teatro
Maria Luiza nasceu José Carlos, em Ceres (GO), mas nunca se reconheceu homem. E isso lhe trouxe enormes transtornos na carreira militar. Em 2000, quando era cabo da Aeronáutica, veio o parecer do Alto Comando, que a diagnosticou como transexual, “incapaz, definitivamente, para o serviço militar”, mas “não inválido, incapacitado total ou permanentemente para qualquer trabalho”. À época, ela, com o nome masculino, servia na Base Aérea de Brasília, onde era mecânico de aeronaves. A decisão do comando culminou na aposentadoria (reforma, na linguagem militar) a contragosto, com metade do salário (o soldo). Acuada, sob ameaça para não tornar a decisão pública, pediu ajuda ao Ministério Público do DF.
O promotor Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Defesa dos Usuários de Saúde (Pró-Vida), comprou a briga. Em meio à guerra judicial, em 2005, ela se submeteu à cirurgia de mudança de sexo. Dois anos depois, a juíza Lília Simone Rodrigues da Costa Viera, da 1ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do DF, deu a sentença que reconheceu o direito de Maria Luiza — nome escolhido antes da cirurgia — pertencer ao sexo feminino. O juiz José Batista Gonçalves da Silva, da Vara de Registros Públicos do DF, acolheu a manifestação do MPDFT e determinou a alteração do nome e a averbação à margem do assento de nascimento. Maria Luiza tinha uma nova certidão. Em 2010, outra grande conquista. O juiz Hamilton de Sá Dantas, da 21ª Vara Federal, mandou a Aeronáutica reintegrar Maria Luiza. Mesmo que na reserva, com soldo igual aos militares nunca reformados. A cabo, porém, não voltou à ativa, em função da idade. Completou 49 anos. O tempo de serviço, 30 anos adotados nas Forças Armadas, já havia transcorrido. Por fim, a Aeronáutica recorreu ao STJ.

Estereótipos
Com o salário pela metade, Maria Luiza ainda luta para permanecer no apartamento funcional de dois quartos que a Aeronáutica também quer lhe tomar. Decisão liminar lhe garante a ocupação do imóvel até o processo se esgotar. Na tarde de quinta-feira, uma equipe do Correio encontrou Maria Luiza e Marcelo Díaz. A cabo apresentava a mesma fisionomia e o mesmo comportamento de quando o drama dela veio à tona, por meio do jornal. De calça jeans, blusa florida sem decote, tamancos azuis claros, unhas pintadas de rosa claro, brincos e batom da mesma cor, ela falou das batalhas judiciais, do cotidiano e do filme.
Tímida, elogiou a iniciativa de Marcelo Díaz: “O filme é um reconhecimento da minha luta. E ele deve servir para abrir os olhos e os corações das pessoas, fazer elas refletirem sobre tolerância.” Marcelo interrompeu: “Para estarmos aqui hoje, tivemos antes muitos encontros. A Maria Luiza é muito reservada, tive que ganhar a confiança dela. E ganhei muito mais que isso. A cada filmagem, eu e toda a minha equipe aprendemos muito com ela. Primeiro, a desconstruir estereótipos. Maria Luzia é uma mulher trans, mas também é militar, católica, devota de Nossa Senhora, dona de casa, tímida. Não gosta de balada, não bebe, não fuma. O filme é sobre isso também, a desconstrução de estereótipos”.
Maria Luiza falou ainda do sofrimento com a prolongação de sua ação judicial. “Entrei na Aeronáutica aos 18 anos. Dediquei-me ao meu trabalho, servi às Forças Armadas de maneira exemplar. Fiz muitos cursos e, antes de ser reformada, era professora, ensinava o que sabia. E queria continuar assim, pois, como o próprio laudo da Aeronáutica diz, sou perfeitamente capaz para o trabalho”, ponderou. Marcelo também comentou a morosidade do processo da sua personagem: “Pensei em filmar a história de Maria Luíza quando li as primeiras matérias do Correio. A produção da obra teve início há seis anos. Pensava que, em 2017, poderia filmar Maria Luiza de farda, na Aeronáutica, recebendo alguma homenagem. Infelizmente, não é isso o que vamos ver. É a vida real.”
Com o nome provisório de Maria Luiza, o longa de Marcelo Díaz começou a ser filmado em agosto do ano passado. “Não há artistas. A Maria Luiza é a protagonista. Há depoimentos do promotor (Diaulas), dos juízes e de militares que serviram com ela. Todos, aliás, só a elogiaram. Claro, também houve muita gente que se recusou a gravar. Até hoje, não temos qualquer posicionamento da Aeronáutica. Nem uma nota oficial. Muito menos autorização para filmar onde ela serviu”, conta o diretor. A obra, segundo ele, está 80% concluída. Falta o acabamento. “Temos recursos do FAC (Fundo de Amparo à Cultura, do GDF), mas ainda falta um pouco de dinheiro, por isso, vamos lançar uma campanha de financiamento pela internet”, anuncia Díaz. Ele ainda sonha com uma cena de final feliz. “Seria uma grande oportunidade de as Forças Armadas reverem a sua oposição. Sonho com a cena da Maria Luiza recebendo alguma homenagem, fardada, batendo continência, em um quartel.”
CORREIO BRAZILIENSE/montedo.com