17 de setembro de 2013

Irmandade militar, que já foi presidida pelo Duque de Caxias, enfrenta dificuldades no RJ

Irmandade militar luta contra fantasmas do passado
Funcionários relatam assombrações no complexo da ordem brasileira que mais se aproxima dos templários europeus
Igreja foi erguida no século XVII para servir de sepulcro aos militares
Nos anos 90, ex-agentes do Serviço Nacional de Informações revezaram-se no comando da instituição
Na Primeira de Março, templo que sedia a Irmandade Santa Cruz
passou por restauração (
Gustavo Miranda)
CHICO OTÁVIO
RIO - Em 77 anos de trabalho dedicado à Irmandade Santa Cruz dos Militares, Luís de Lima acumulou histórias sob o teto da igreja talhada pelo Mestre Valentim na Rua Primeiro de Março, 36, no Centro do Rio. Nenhuma delas, porém, se compara ao dia em que ouviu o órgão tocar sozinho. Funcionário até hoje na ativa, ele não gosta de falar em assombração. Prefere dizer que são militares do passado, “que gostam de nos visitar espiritualmente”.
Há relatos de janelas batendo, ruído de passos e outros enigmas. Cercada de mistérios e tradição, a ordem católica brasileira que mais se aproxima dos templários europeus está fazendo 390 anos. Erguida no século XVII para servir de sepulcro aos militares, a igreja é uma relíquia histórica. Seus empregados falam de assombrações, mas foi gente de carne e osso que acentuou esse traço obscuro da ordem. Com a volta da democracia ao país, em 1985, a irmandade, formada exclusivamente por oficiais do Exército, serviu de porto seguro para ex-agentes da repressão. Ali, entre os entalhes do Mestre Valentim e a Cruz Templária, eles preservam alguns dos segredos mais protegidos do regime militar.
O aniversário, que será comemorado na sexta-feira, coincide com o fim de um trabalho de prospecção estratigráfica das paredes internas da igreja de estilo predominantemente rococó, mas com vestígios do barroco. Os restauradores retiraram até oito camadas de tinta, em determinados pontos, para chegar à cor original. Mais do que recuperar os tons de branco e amarelo dos primeiros tempos, eles conseguiram devolver aos anjos esculpidos por Valentim o traçado original, coberto ao longo dos anos por camadas e mais camadas de massa e tinta que lhe davam, injustamente, um aspecto grotesco.
— Descobrimos por trás da tinta grossa que os anjos, originalmente, eram policromados, com cores que ressaltavam até a cor da pele — conta a restauradora Paula Rocha.
Mas ainda vai demorar para que os frequentadores conheçam a feição primitiva dos entalhes de Valentim. Antes de recuperar a fachada histórica, cujo projeto dependia da prospecção, a irmandade tentará captar recursos, por meio de renúncia fiscal, para a recuperação emergencial de sua fachada, telhado, instalações elétricas e sistema de prevenção de incêndio. Em seguida, voltará a correr atrás de empresas interessadas no projeto de restauração do templo, cuja execução deverá durar dois anos.
Embora a irmandade administre mais de 500 imóveis, a maioria doado por militares católicos no século passado, 30% de sua renda bruta está comprometida com projetos de assistência social, incluindo um lar para idosos na Penha. Por tradição, distribui ainda, todo ano, um pecúlio a cerca de 100 pensionistas, todas viúvas de irmãos militares. Seus recursos são reforçados pelo aluguel da igreja para casamentos e outras celebrações, além de contribuições espontâneas. Sobra pouco para investir. E fechar as portas por dois anos, para uma grande reforma, significará também perder uma das suas fontes de renda.

Duque de Caxias entre os membros
Pela cadeira de provedor na irmandade, postada na primeira fila da igreja, já passaram personalidades históricas como Duque de Caxias, Conde D’Eu, Eurico Gaspar Dutra e Henrique Teixeira Lott. Funcionário desde 1936, Luís de Lima, de 84 anos, hoje no Departamento de Administração Patrimonial, conviveu com os dois últimos, que se dividiam entre a fé católica e os gabinetes do poder — Dutra foi presidente do Brasil de 1946 a 1951 e Lott, ministro da Guerra no governo JK.
— Subia no mesmo elevador com o marechal Dutra. Me lembro até de um dia em que teve dor de barriga quando voltava para casa — recorda-se.
Dos templos de grandeza, quando a carteira de pensionistas da irmandade chegou a ter mil beneficiários e suas missas faziam parte da programação oficial da cidade, pouco restou além da opulência de seu templo. A assistência a viúvas e órfãos dos irmãos praticamente perdeu o propósito. Suas missas comunitárias, celebradas quatro vezes por semana, sempre às 12 horas, dificilmente lotam o templo. Quem passa apressado pela porta da igreja não imagina que o lugar já abrigou uma fortificação — nos tempos em que a Baía de Guanabara avançava até a Rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita — e, posteriormente, serviu de jazigo para militares portugueses e brasileiros.
Hoje, o desafio é rejuvenescer o quadro de 115 irmãos, composto essencialmente por militares que viveram os conturbados anos do regime militar. Para isso, a irmandade aposta numa campanha junto à caserna, capaz de atrair as novas gerações de tenentes e capitães. Não será fácil. Além do próprio encolhimento do catolicismo, mostrado pelas pesquisas demográficas, a ordem enfrenta o estigma da cultura do segredo e das sombras. Sua última referência pública ocorreu em 1986, início do governo Sarney, quando o então ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), general Ivan de Souza Mendes, descobriu que dois ex-agentes da repressão, suspeitos de envolvimento em casos obscuros, integravam a irmandade.
O vínculo serviu de pretexto para o ministro demiti-los, dando início a um longo processo de renovação dos quadros do sistema de inteligência. Porém, o episódio também serviu para revelar que a irmandade não abrigava apenas dois, mas dezenas de militares egressos da repressão, que teriam encontrado na ordem a acolhida perdida no novo governo, agora entregue aos civis. A ida do grupo teria sido apadrinhada pelo provedor da época, o coronel Paulo Ramos (1984-87). Ele teria dado carta branca ao coronel Ary de Aguiar Freire, então chefe de Operações da agência Rio do SNI, para trazer seu grupo.
Desde os anos 1990, os ex-agentes do SNI revezavam-se no comando da instituição. Porém, com o afastamento do penúltimo provedor, o próprio Ary de Aguiar, por motivo de doença, no ano passado, a irmandade iniciou um discreto projeto de abertura para a população. Uma das ideias é transformar uma das alas do conjunto arquitetônico, que ocupa um quarteirão inteiro, em museu. Outra atração é o órgão pneumático, construído pelos irmãos Berner, com 1.100 tubos. O mesmo que o velho funcionário, um dia, ouviu tocar sozinho.
O Globo/montedo.com