“HAITI VAI CONTINUAR SENDO O PAÍS MAIS POBRE DA AMÉRICA”, DIZ CORONEL DO EXÉRCITO
Minustah — nome dado à missão pacificadora da ONU no Haiti — completa 10 anos em 2014. Na foto, soldados brasileiros em Porto Príncipe (Foto: Vanderlei Almeida / AFP) |
Milena Buarque (Repórter do Futuro)
Enquanto muitos problemas permanecem sem solução, Minustah completa dez anos em 2014
Em 2016, o Haiti estará seguro, estável e preparado para voltar desenvolver sua economia. Para o coronel brasileiro José Mateus Teixeira Ribeiro, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), após quase dez anos de operações na região, terá cumprido o seu papel. “O principal objetivo é dar tempo da formação e estruturação da Polícia Nacional Haitiana (PNH)”, diz o oficial de comunicação do Centro de Comunicação Social do Exército que serviu, ele próprio, no Haiti. No entanto, prevê, o país “vai continuar sendo o mais pobre da América”.
Coronel José Mateus Teixeira Ribeiro (Foto: Repórter do Futuro) |
A República do Haiti há muito não sabe o que é sobreviver por seus próprios recursos. Em 30 de abril de 2014, as tropas da Minustah completam dez anos de trabalho. Quando criou a Missão, nos idos de 2004, o Conselho de Segurança das Nações Unidas teve como objetivo iniciar uma operação que pudesse trazer de volta a estabilidade, a pacificação da região e o desarmamento de grupos de guerrilheiros e de quadrilhas de criminosos comuns, em seguida ao caos que se abateu sobre o país após a deposição, por golpe militar, do presidente Jean-Bertrand Aristide .
Prestes a comemorar 32 anos de Exército, bacharel em História, e ex-integrante no 17º Contingente no Haiti –, que embarcou para a capital, Porto Príncipe, em 4 de novembro de 2012 para uma estada de 6 meses, com 652 militares, vindos de vários Batalhões espalhados pelo país – como oficial de comunicação social, o coronel Mateus não se esqueceu do que viu no país caribenho. “Parecia que as pessoas tinham saído de um campo de concentração nazista”, sintetiza sem exagerar no drama.
Foram raros os espasmos de democracia ao longo da história do Haiti, que declarou em 1804 sua independência da França e só conseguiu governos estáveis sob ditadura. Dezenas de golpes de Estado substituíram um ditador por outro e, eventualmente, encerravam curtas experiências democráticas.
Em 2004, o país se desestruturou mais uma vez, após um período de insurgência e a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide, em sua terceira passagem pelo poder. Sob a acusação de prática de abusos contra os direitos humanos e de corrupção, Aristide, ex-padre católico, rumou para o exílio na África do Sul.
Restou para a ONU a criação da ambiciosa missão, com comando entregue ao Brasil, que já havia tido experiências similares em Moçambique e Angola.
A missão das Nações Unidas surgiu em um contexto no qual os Estados Unidos, que haviam desembarcado tropas no Haiti mais de uma vez no passado, estavam envolvidos nas guerras do Afeganistão e do Iraque e interessados em delegar o caso do país caribenho para países em desenvolvimento. “A Minustah coincide com uma série de outras intervenções americanas”, afirma o professor de Relações Internacionais Maurício Santoro, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Do outro lado da troca de alianças, o Brasil, que sempre preservou um posicionamento de defesa da ONU e do multilateralismo, teve em mente um de seus principais objetivos políticos em escala global: alcançar o posto de membro permanente do Conselho de Segurança. Não tendo vínculos históricos com o Haiti, seria “impossível manter aquela candidatura sem estar na única missão de paz nas Américas”, pondera Santoro.
Durante a invasão do Iraque por tropas americanas, em 2003, as Nações Unidas foram colocadas de escanteio, até porque os Estados Unidos sabiam que haveria o veto por parte da Rússia e da China a qualquer iniciativa militar da organização. Reforçar o papel da ONU e enfatizar o direito internacional se tornaram, segundo o professor, atitudes favoráveis ao Brasil.
Para os vizinhos do Norte, contudo, por sua vez, interessava muito o o controle da situação, a fim de se evitar uma crise de refugiados haitianos nas praias da Flórida.
“O único momento que [os Estados Unidos] se engajam é logo após o terremoto [de janeiro de 2011]”, diz Santoro. A catástrofe atingiu mais de 3 milhões dos 10,2 milhões de haitianos, e provocou a morte de entre 100 mil a 200 mil pessoas. Os americanos enviam para o país mais pobre da América e do Caribe cerca de 10 mil soldados para apoio técnico. E, segundo o professor, criam picuinhas na hora de obedecer a oficiais estrangeiros.
Imagem: AE |
Resultado: Brasil 1 x 0 Haiti
O copo pode estar meio cheio ou meio vazio. A ONU, para a retirada das tropas até 2016, conta com o fortalecimento da Polícia Nacional. Espera-se que a nova polícia esteja em condições de atuar em todo o país e que seja capaz de oferecer segurança à população, com seu contingente de 15 mil membros.
Para o haitiano Casseus Ernst, conhecido como Ernesto El Ché, que mora hoje no Rio de Janeiro, o principal problema de seu país não é a violência e a criminalidade, mas a falta de infraestrutura. “Desde 1994, depois do golpe de Estado militar, tem uma missão da ONU capacitando a polícia haitiana”, conta Ernst. “Depois de 20 anos, é a mesma, mas sem experiência”, reclama. “Nem sequer um helicóptero tem.”
A polícia do Haiti tem todos os problemas encontrados em polícias de países pobres. Ao longo dos anos, esteve intimamente envolvida em golpes, torturas e repressão. É como se os anos 1960 e 1970 de lá dialogassem com o Brasil de cá. Não há histórico, por parte da ONU, de casos de sucesso em criações de instituições.
O país caribenho não tem um modelo a ser seguido. Para Santoro, é possível que o prazo de 2016 para o fim da missão da ONU seja adiado. Por outro lado, há certa fadiga. “O Brasil foi levado para uma missão muito mais longa do que se esperava”, diz o professor. “O próprio Brasil não estava preparado para o tipo de desafio que encontrou no Haiti”, pondera Santoro.
O que colhemos nestes dez anos? “Os militares aprenderam novas táticas, que posteriormente foram usadas em favelas do Rio de Janeiro”, comenta. Além disso, houve uma cooperação de tropas de países latino-americanos, anteriormente muito mais voltados para cooperação no comércio e em outros setores. Mas Santoro é categórico ao assinalar que a missão foi “mais positiva para o Brasil do que para os haitianos”.
Os impactos econômicos da Minustah, assim como de outras tantas missões de paz da ONU, são pequenos, diferentemente do que esperavam os haitianos. “Esse é um dos grandes problemas. Há mais uma mediação de conflitos [por parte da ONU], do que uma promoção de um crescimento econômico”, explica Santoro.
De todo modo, não há dúvida de que houve uma grande melhora na situação da segurança no Haiti, que “não está mais à beira de uma guerra civil”. De tao forma que o receio de muitos haitianos, agora, é o que pode acontecer quando as Nações Unidas se retirarem.
Ricardo Setti (Veja)/montedo.com