“A retirada das tropas do Haiti deve ser feita de modo ordenado”
Quatro anos após o sismo no país mais pobre das Américas, o chanceler brasileiro Luiz Alberto Figueiredo Machado diz ao EL PAÍS que a fase crítica foi superada e vê um quadro promissor
O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo Machado. / FABIO RODRIGUES POZZEBOM (ABR) |
FREDERICO ROSAS
Em 12 de janeiro de 2010, o Haiti vivia um dos momentos mais trágicos de sua história. Um forte terremoto de sete graus na escala Richter, seguido de duas réplicas, provocou a morte de pelo menos 220 mil pessoas, deixando ainda 1,5 milhão de deslocados, em uma crise humanitária de contornos desesperadores no país mais pobre das Américas. No comando militar da missão da ONU no país (MINUSTAH) desde 2004, o Brasil registrou 21 vítimas fatais em decorrência do sismo, entre elas a médica sanitarista Zilda Arns, de 75 anos.
Quatro anos depois, o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo Machado, afirma, em entrevista ao EL PAÍS, que a fase crítica de emergência humanitária após o sismo já foi superada – o terremoto provocou epidemias de cólera e destruiu hospitais, escolas, postos da ONU e o próprio palácio do Governo nacional. E que o território caribenho tem um quadro político promissor para uma diminuição dos efetivos brasileiros.
“A retirada das tropas – cuja estada não cabe prolongar para além do necessário - deve ser feita de modo ordenado para evitar que os ganhos dos últimos anos venham a se perder”, afirma. O Brasil, que já gastou cerca de 2 bilhões de reais (839,6 milhões de dólares) no Haiti, mantém aproximadamente 1.450 soldados na MINUSTAH, após ter chegado a 2.300 logo após o terremoto. Em abril de 2013, 430 soldados já voltaram ao país.
Com “o terremoto, parte do que havia sido feito antes foi perdido, mas não houve retorno das gangues que atuavam na capital. A MINUSTAH reorientou suas atividades para também apoiar os esforços humanitários e o resgate das vítimas, além de seguir contribuindo para a manutenção da estabilidade no Haiti”, acrescenta o chanceler, que vê ainda como “natural” o Brasil ser considerado para ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Pergunta: Quais são as principais conquistas brasileiras no Haiti? E os erros? Quais fatores levaram o país a assumir esse papel pacificador em território estrangeiro?
Resposta: A convite das Nações Unidas, o Brasil ocupa, desde 2004, o comando militar da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH). A MINUSTAH tem sido um valioso instrumento da comunidade internacional e da ONU, em particular, para apoiar o Governo e o povo haitianos a manter a segurança, bem como avançar nas áreas social, econômica e institucional.
Com o Haiti, compartilhamos muitos valores e laços históricos e culturais, razão pela qual a sociedade brasileira acompanha de perto o sentido e a duração do nosso engajamento na MINUSTAH. As principais conquistas da MINUSTAH – para o que colaboram também vários outros países latino-americanos – foram ter ajudado a fortalecer a estabilidade no Haiti e contribuído para o seu desenvolvimento.
Além de dar contribuição militar à MINUSTAH, o Governo brasileiro tem buscado, ao longo dos anos, intensificar a cooperação técnica e humanitária com o Haiti, no entendimento que a segurança e o desenvolvimento são elementos essenciais para uma paz duradoura. A Companhia de Engenharia Militar brasileira na MINUSTAH auxilia nesse esforço. Ela desempenha atividades como perfuração de poços artesianos, construção de pontes e açudes, contenção de encostas, construção e reparação de estradas, além de atuar em missões de defesa civil, sobretudo após o terremoto de 2010.
P: O que representa para o Brasil e a América Latina liderar uma missão desse tipo no exterior? Trata-se de uma situação inédita ou com antecedentes na história brasileira?
R: A importante participação de países latino-americanos e caribenhos nos esforços de paz e desenvolvimento no Haiti é exemplar. Temos envidado esforços coletivos, inclusive por meio da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a CELAC, para contribuir, na medida de nossas capacidades, para que o Haiti possa, de forma soberana, desenvolver-se em segurança, com base em instituições sólidas e com o devido respeito aos valores democráticos e aos direitos humanos.
A participação do Brasil em missões de paz não é recente. Já estivemos presentes em cerca de 50 operações de paz das Nações Unidas e missões afins, com mais de 30 mil militares, em quase todas as regiões do mundo. Nas Américas, por exemplo, participamos em importantes missões no final dos 80 e início dos 90: ONUCA, na América Central; ONUSAL, em El Salvador; e MINUGUA, na Guatemala.
P: Como o Itamaraty avalia a situação atual no Haiti?
R: O quadro político no Haiti é promissor. O projeto de lei eleitoral, um dos requisitos para a realização das próximas eleições legislativas e locais, foi recentemente aprovado pelo Parlamento e deverá ser promulgado pelo Presidente nos próximos dias. Com isso, estarão dadas as condições para a organização das eleições, pendentes desde 2012. É, porém, motivo de preocupação certo aumento da violência em várias cidades do Haiti, fenômeno ligado à campanha eleitoral.
P: Já é possível notar a contribuição brasileira para a estabilização do território caribenho?
R: É evidente o valor da contribuição que a MINUSTAH tem dado ao Haiti. Desde a chegada da Missão, houve duas eleições presidenciais democráticas, e a fase crítica de emergência humanitária pós-terremoto foi superada.
Do ponto de vista da garantia da segurança, a Missão tem sido bem sucedida contra gangues que antes agiam livremente na capital, Porto Príncipe, sobretudo nas zonas de Belair, Cité Soleil e Cité Militaire.
Com o terremoto, em janeiro de 2010, parte do que havia sido feito antes foi perdido, mas não houve retorno das gangues que atuavam na capital. A MINUSTAH reorientou suas atividades para também apoiar os esforços humanitários e o resgate das vítimas, além de seguir contribuindo para a manutenção da estabilidade no Haiti.
P: Há previsão para a saída ou a diminuição das tropas brasileiras? Há intenção de se repetir a experiência em outros países?
R: O Conselho de Segurança das Nações Unidas tem reduzido o contingente militar da MINUSTAH, à luz da evolução da situação no país, o que implica a diminuição dos efetivos brasileiros. A retirada das tropas – cuja estada não cabe prolongar para além do necessário - deve ser feita de modo ordenado para evitar que os ganhos dos últimos anos venham a se perder.
O Brasil é hoje o vigésimo maior contribuinte de tropas da ONU, com militares e policiais presentes em nove missões de paz, em diversos continentes. O país mantém o importante comando do componente marítimo da UNIFIL (Força da ONU no Líbano), para a qual contribuímos com uma fragata da Marinha do Brasil. Além disso, o General brasileiro Santos Cruz é o comandante militar da missão de paz na República Democrática do Congo (MONUSCO).
Participamos também dos esforços de reconstrução de países que estão saindo de conflitos, inclusive mediante nossa atuação na Comissão de Consolidação da Paz e contribuições ao Fundo de Consolidação da Paz. O Brasil continuará a participar dos esforços de manutenção e consolidação da paz das Nações Unidas, de acordo com nossas possibilidades.
P: O Itamaraty considera que a missão brasileira pode contribuir para que o país conquiste a tão aguardada vaga no Conselho de Segurança da ONU? Quais seriam os próximos passos para a obtenção desse objetivo?
R: Ao Brasil interessa o fortalecimento do sistema multilateral, que deve ser a base de uma ordem internacional justa, dotada de mecanismos e instrumentos com legitimidade e eficácia. Assim, o Brasil valoriza as Nações Unidas, bem como as missões de paz, que são o seu principal instrumento em matéria de manutenção da paz e da segurança internacional.
A reconhecida qualidade das tropas brasileiras em operações de manutenção da paz consolida a imagem do Brasil como país não só disposto, mas também capaz de assumir maiores responsabilidades no campo da paz e da segurança internacionais. Tal envolvimento – juntamente com outros fatores, como solidez econômica, estabilidade democrática, grande população e extensão geográfica –, torna natural que o Brasil seja considerado num momento em que se busca reformar as estâncias decisórias das Nações Unidas, notadamente o Conselho de Segurança.
EL PAÍS/montedo.com