Cabo do Exército filmou patrulha, contato com crianças e dia a dia na base.
G1 Campinas fez série sobre relações da cidade com o país caribenho.
Dia a dia na região onde os militares de Campinas atuam na Missão de Paz do Haiti (Foto: Lana Torres / G1) |
Lana Torres *
Do G1 Campinas e Região, em Porto Príncipe
Em Cité Soleil, ou Cidade do Sol, crianças e porcos disputam espaço na mesma montanha de lixo. O cenário, da miséria em seu nível extremo, compõe a realidade do local de trabalho de militares de Campinas (SP), que foram incumbidos de fazer a segurança na região mais crítica do Haiti, segundo a Missão das Nações Unidas no país (Minustah). A pedido do G1, um dos 700 soldados que viajaram da cidade paulista para o país caribenho registrou e narrou com uma câmera o dia a dia do pelotão, desde os momentos de descontração na base até a ligação que eles estabelecem com o local e a população nativa. O resultado é a primeira reportagem de uma série sobre as relações entre Campinas e o Haiti, que será publicada a partir desta segunda-feira (31).
Com 200 mil habitantes, Cité Soleil é uma espécie de cidade-satélite, ou distrito, da capital Porto Príncipe. Pelas ruelas daquela região, é possível conhecer a pobreza em escala ainda não experimentada pelas populações mais miseráveis do Brasil, por exemplo.
“Existem situações, particularmente na capital, que são de miséria, mas não só isso. É uma situação de precariedade, muito superior à de qualquer outro país da América Latina. Em alguns bairros da capital, isso fica muito claro. É uma população que há anos está entregue a uma noção de ‘degaje nou’, que quer dizer ‘a gente se vira’. E isso é muito precário”, afirma Omar Ribeiro Thomaz, sociólogo da Unicamp, que estuda há 16 anos o Haiti.
O brasileiro Manoel Felix da Cruz Neto conheceu e tem vivido de perto esta realidade ( veja o vídeo acima). Com o codinome “Cabo Félix”, ele escuta há 4 meses, enquanto percorre as ruas de Cité Soleil, os chamados das crianças haitianas, apelidadas por ele e pelos colegas de “petit”.
"É uma população que há anos está entregue à noção de ‘degaje nou’,
que quer dizer ‘a gente se vira’. E isso é muito precário"
Omar Ribeiro Thomaz, sociólogo da Unicamp
“Hey, you! Chocolat! Hey, you! Chocolat!”, gritam repetidas vezes durante o patrulhamento dos militares, na esperança de ganharem um doce, como lhes ensinaram os soldados estadunidenses. Acabam por se contentar com um colo, um afago ou o cumprimento de batidas de mãos, já que os brasileiros são proibidos de alimentar a população fora das atividades sociais específicas para este fim.
Rotina
A base militar da Cidade do Sol, composta em sua maioria por militares de Campinas, possui quatro pelotões, que se revezam nas atividades internas e no patrulhamento. De acordo com o comandante da companhia, o capitão Márcio Rodrigo Ribas, a patrulha pelas ruas é feita aproximadamente seis vezes por dias, cada uma com duração de duas a quatro horas.
“Sem dúvida nenhuma, no Haiti como um todo, esta é a área com maior criminalidade. A gente observa por aqui confrontos entre gangues e sempre com política envolvida. Isso porque, se um político dominar certa região, ele tem voto para ele. Então, ele financia o chefe da gangue e eles tentam conquistar votos e poder naquela região, por meio do uso da força.”, afirma.
Dia a dia na região onde os militares de Campinas atuam na Missão de Paz do Haiti (Foto: Lana Torres/G1)
Segundo o próprio Exército brasileiro, os três últimos incidentes criminosos de maior proporção registrados naquela região até a visita da reportagem, há um mês, ocorreram em agosto, janeiro e fevereiro, ou seja, três em um intervalo de sete meses.
Sem perspectiva do início da retirada das tropas antes de 2015, cabo Félix e seus colegas seguem na rotina de carregar mais de 20 quilos de equipamentos, entre colete, capacete e armamento, enquanto vigiam Cité Soleil. “A patrulha dura três horas e, nesse período, a gente roda o bairro de diferentes maneiras. É muito calor, o sol sempre está forte, o equipamento também é muito quente e pesado”, conta.
Os haitianos
O comportamento da população durante a passagem dos fardados pelas ruas e vielas varia entre a indiferença, a desconfiança, o apoio e a euforia – esta última, sobretudo dos “petit”, que nascidos há menos de 10 anos, ou seja, depois que a Minustah foi criada, cresceram acostumados à presença de fuzis e roupa camuflada.
A nossa ideia é buscar a maior aproximação possível. Eu acredito que esta proximidade não tira o respeito. Na hora que eu tiver que impor a ordem, tiver que fazer uma ação mais dura, eu vou fazer"
coronel Anísio David de Oliveira Junior, comandande das tropas brasileiras no Haiti
Neste dia, no entanto, uma “arma” diferente arrancou sorrisos e gritaria durante a patrulha dos campineiros pelas ruas de Cité Soleil. Os pequenos pareciam não acreditar no que viam no visor do celular empunhado por Félix: eles próprios. Com a câmera voltada para eles, a patrulha virou, para aquelas crianças, uma festa.
Para o comandante do atual contingente brasileiro no Haiti, o coronel Anísio David de Oliveira Junior, a proximidade do contingente com a população é positiva, embora ele admita a dificuldade em estabelecer um limite entre este envolvimento e o distanciamento necessário para o cumprimento de algumas atividades.
“A nossa ideia é buscar a maior aproximação possível. Eu dei uma determinação que cada comandante de companhia traga pelo menos três líderes comunitários para almoçar comigo e conhecer a base. Nosso objetivo é realmente conhecer muito o pessoal. Eu realmente não consegui visualizar qual o limite que eu tenho que ter. Porque eu acredito que esta proximidade não tira o respeito. Na hora que eu tiver que impor a ordem, que eu tenho que fazer uma ação mais dura, eu vou fazer”, defendeu.
O que se vê lá fora
No percurso feito pelos militares, além do trânsito caótico, onde a buzina é o único componente de “sinalização” disponível, é possível observar também a indistinção da população, por força das circunstâncias, entre o público e o privado. Com o calor forte e a falta de infraestrutura nas casas, é comum, por exemplo, flagrar o banho improvisado, a soneca e até a lição “de casa” sendo executados pelos estudantes ali mesmo nas calçadas.
Comida, roupa, carvão e livros, tudo é vendido informalmente em barracas, ou mesmo no chão, que é transformado em uma caótica vitrine de "um pouco de tudo". Para os haitianos, o preço é em gourde, moeda local. Para os estrangeiros, a venda é feita em dólar, dinheiro que foi incorporado a comércio haitiano. A cotação chega a até quarenta gourdes por dólar.
Da casa simples em que vive, com paredes inacabadas e sem energia elétrica, um morador de pouco mais de 50 anos observa o contingente e comenta que, desde que a segurança seja garantida à população do bairro, ele não se importa com a presença dos estrangeiros ali. “Aqui era muito violento. Se eles nos protegerem, não há problema nenhum”, diz. O artista, enquanto vende seus quadros na praça, já demonstra mais entusiasmo: “Quando a Minustah sair, não haverá mais Haiti. Não haverá Haiti”, repete com veemência.
O que se vê aqui dentro
A companhia militar responsável por Cité Soleil é constituída exclusivamente por homens. A base, ao contrário daquela que abriga a maior parte do contingente, em Porto Príncipe, é menor e fica dentro da área de cinco quilômetros quadrados, que é de responsabilidade do grupo. “Aqui, a gente sai na porta e já está na área em que trabalhamos”, explica o comandante Ribas.
É comum a presença de crianças na porta da sede da companhia. Os “petit” chamam os militares pelo nome e já dominam a língua portuguesa. A cada entrada e saída de viatura, eles se aproximam e pedem água, comida ou dinheiro. Na extremidade oposta da base, uma área antes usada como banheiro a céu aberto pela população, foi transformada em uma quadra de futebol.
Os soldados, que ficam pelo menos seis meses fora de casa, têm estrutura para se comunicar com a família por telefone, e, embora as áreas de lazer sejam limitadas, o grupo tem uma área onde fazem confraternizações, como churrasco e aniversários, além de academia disponível 24 horas por dia. Os militares que atuam no Haiti são voluntários, no sentido que podem escolher ou não participar da Minustah. Pelo trabalho fora de casa, eles recebem um salário adicional, pago pela ONU.
* A repórter viajou a convite do Ministério da Defesa.
G1/montedo.com
G1/montedo.com