O subtenente do Exército Sérgio da Silva é o novo presidente a Associação das Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
"O sentimento não muda. É interno. E dói", afirma novo presidente da AVTSM
AVTSM está sob nova direção, mas propósito segue o mesmo: o pedido por justiça
Foto: Gabriel Haesbaert / Especial |
Maurício Araujo
Especial
Há quase um mês à frente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), cargo para o qual foi eleito em 7 de março deste ano, Sérgio da Silva carrega consigo o peso de comandar uma entidade que surgiu da dor e que há mais de dois anos luta por justiça. Ele é pai de uma das 242 vítimas do incêndio da boate Kiss, ocorrido em 27 de janeiro de 2013. Às 20h desta quinta-feira, oficialmente, o presidente e toda a nova diretoria tomam posse em uma cerimônia fechada.
Na última quinta-feira, Sérgio recebeu o "Diário" na sede da Associação, na antiga reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Por uma hora e meia, o atual presidente falou sobre a nova gestão da AVTSM, antes liderada por Adherbal Ferreira, e sobre a saudade do filho Augusto Sérgio Krauspenhar da Silva que morreu, aos 20 anos, dentro da casa noturna.
Além da batalha por responsabilizações, Sérgio luta todos os dias para manter a serenidade e não desistir. É difícil, garante ele, conviver com as angustias que ocuparam o lugar do filho mais velho em casa e com a postura de Santa Maria frente à tragédia que abalou o país:
_ As pessoas não podem esquecer. Eu sei, a vida tem que continuar, mas essa marca não pode ser esquecida ou simplesmente apagada. Foram nossos filhos, foram os filhos de Santa Maria que morreram naquela madrugada.
Sérgio afirma que a Associação não mudará seus princípios sua proposta inicial de buscar por justiça, mas também garante que, se necessário, a entidade será mais combativa. Ele sabe que a luta é longa, que os anos seguirão e as respostas podem tardar, mas confia que elas virão. Enquanto aguarda, o pai de Augusto Sérgio promete que não desistirá e que vai renovar, a cada dia, a força para nunca deixar que a memória do filho e das demais 241 vítimas caia no esquecimento.
Nesta semana, familiares de vítimas da tragédia da boate Kiss que participam do movimento Santa Maria do Luto à Luta, do qual o atual presidente da associação também é membro, decidiram que, a partir de agora, a tenda da vigília, na Praça Saldanha Marinho, só irá funcionar nas terças e quintas-feiras, das 14h às 18h. Isso porque somente cerca de 10 famílias se revezam para ficar no local, e o número pequeno sobrecarrega as pessoas.
Leia tambémBoate Kiss: subtenente do Exército lidera busca por justiça para as vítimas.Tragédia em Santa Maria: a exemplar atuação das Forças Armadas. Ou: Ministro da Defesa para quê?
"O sentimento não muda. É interno. E dói"
Diário de Santa Maria _ Por que o senhor quis ser presidente?
Sérgio da Silva _ Eu já atuava na Associação como administrador. Sempre apoiei o seu Adherbal, sempre estivemos juntos. Agora, apenas acumulo a função de presidente, ainda sendo administrador. Essa é uma luta minha, nossa. Por isso, escolhi estar à frente da associação.
Diário _ Como será sua gestão?
Sérgio _ Vamos tentar aproximar a associação da sociedade. Estivemos afastados porque as pessoas tinham medo por sermos pais e mães de vítimas. Eles tinham medo de falar conosco quando, na verdade, tudo que precisávamos era que nos abraçassem. Vou tentar que a sociedade representativa venha conosco. Santa Maria não pode colocar a tragédia embaixo do pano. Quero que nosso sofrimento se transforme em segurança. Quero união, pois nosso sentimento continua. O sentimento não muda. É interno. E dói.
Diário _ Quais são os objetivos no momento?
Sérgio _ Queremos trazer os sobreviventes para a associação, pois é interesse deles. É uma luta deles, pela saúde, por justiça. Muitos dizem que querem esquecer, mas não tem como esquecer, está gravado na alma. No futuro, eles podem precisar de pensão, de alguma ajuda devido ao que aconteceu. Espero que eles participem mais da associação. É difícil, nós sabemos. Os pais têm a alma machucada, e eles têm a alma e o corpo machucado.
Diário _ O que muda na associação a partir de agora?
Sérgio _ Nada. Seguimos atuando da mesma forma.
Diário _ A AVTSM tende a ser mais combativa, ir às ruas mais vezes com outros movimentos, como com o Luto à Luta?
Sérgio _ Sou a favor de todos os movimentos. Algumas pessoas falam que o Movimento Luto à Luta é radical porque atirou tinta vermelha na prefeitura. Isso não é radical. Radical é o que aconteceu conosco. Se tiver que parar uma rua, nós vamos parar. Você não vai ver a associação tocar pedra. Não apoiamos o radicalismo, quebradeira, mas os atos, sim, vamos apoiar. Temos CNPJ, temos tudo, e se tiver que ser combativo, vamos ser. Agora, se um pai, sozinho, vai lá e faz algo, ele é responsável pelo próprio ato. Não pode confundir a associação com a atuação de um pai ou uma mãe.
Diário _ O que o senhor espera da AVTSM nos próximos cinco ou 10 anos?
Sérgio _ Já que tomamos essa paulada, então que usemos isso para que, daqui a 10 anos, as pessoas nos enxerguem ainda mais autônomos. Queremos ser exemplo. Queremos uma associação que represente a sociedade, os seus interesses em segurança, fiscalização.
Diário _ Como o senhor enxerga a atuação dos pais e sobreviventes?
Sérgio _ Normalmente, são os mesmos pais, mães e familiares que puxam a frente, reúnem os grupos. Tem alguns pais que apoiam, mas que querem ficar na deles. Respeitamos.
Diário _ O que o senhor espera da justiça?
Sérgio _ A justiça. É por isso que estou aqui. O que acontece a volta é consequência. É preciso perguntar aos promotores do caso sobre justiça. Os promotores dizem que os caras não têm culpa, mas a gente sabe que têm. Eles, ao invés de encaminhar à Justiça, não denunciaram. Fomos a Porto Alegre chorar parar pedir que o processo retornasse. Nós temos que responsabilizar na área cível também.
Diário _ E quanto ao processo criminal?
Sérgio _ Muita gente diz que não vai dar nada. Esse é um grande erro. Se você diz que não vai dar nada, não vai dar nada mesmo. A associação quer respostas. Pagamos todas as estruturas para proteger a gente, e o ente público deve se responsabilizar com a gente. Não é a associação que tem que responder pela morte de 242 pessoas. Nós queremos justiça. Um cara dizer para um pai esquecer é absurdo. Nós passamos a maior dor que um ser humano pode ter, que a perda de um filho. Se a gente não conseguir punir ninguém neste município, não adianta criar leis, outras boates correm o risco de incendiar.
Diário _ Como o senhor avalia a Lei Kiss?
Sérgio _ Olha, se cumprissem as leis anteriores, não precisava criar novas leis. O inquérito da polícia mostra que foi contrariada a lei que existia. A Lei Kiss foi feita para político e empresários. O interesse político e empresarial prevaleceu acima dos interesses dos cidadãos.
Diário _ A fiscalização está mais rígida na sua opinião?
Sérgio _ Sinceramente, acho que continua a mesma coisa. Acho que os bombeiros estão dando mais pressão.
Diário _ Como está sua vida após mais de dois anos da tragédia?
Sérgio _ Minha vida teve uma mudança gigante. Eu estava aposentado, um filho se formando, e outro entrando na faculdade. Meu sentimento mudou, senti raiva. Percebi que o sistema, que as estruturas e instituições que deveriam nos proteger, na verdade, nos machucam, fazem mal para a gente. No início, tive vontade de sumir de Santa Maria. É difícil, um dia a gente está triste, mas, no outro, vamos à luta. A saudade dói. A maior dor que nós temos é na alma, ninguém vai consertar. Nossa alma está ferida, e não tem cura. Poderiam cortar um braço que a dor iria passar, mas lá dentro... Não tem como. Você vive para quê? Você vive para os filhos. Você deixa de comprar roupa para dar aos filhos, você não come para dar a eles. E, de repente, alguém tira tudo isso de você. Como fica?
DIÁRIO DE SANTA MARIA/montedo.com