26 de junho de 2010

DOS COTURNOS ÀS SAPATILHAS

Marcelo dos Santos Lages, 36 anos, calça sapatilhas e dança ao lado de Ana Botafogo (Foto: Nauro Júnior)
 
Nilson Mariano | nilson.mariano@zerohora.com.br

O tenente do Exército que marchava de coturno na lama e atirava de fuzil nos adestramentos para uma eventual guerra hoje fascina plateias nos palcos de balé de Nova York e da Europa. Marcelo dos Santos Lages, 36 anos, agora calça sapatilhas e dança com ninguém menos que Ana Botafogo, a primeira-dama do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Há jovens que sonham envergar a farda verde-oliva, quem sabe pendurar uma medalha no peito por ato de bravura — se conquistar as divisas de general, então, é a glória. O porto-alegrense Marcelo foi um milico impecável, exemplar no ritual de “apresentar armas!”, mas desejava mesmo era dançar o Quebra-Nozes trajando a casaca e a malha do balé. Há 10 anos, deixou a caserna e embarcou para o Rio.
Após dois meses de treinos, estreou no Theatro Municipal. Atualmente, contracena com as primeiras bailarinas da instituição, a Ana Botafogo e a Cecilia Kerche. Marcelo está mais à vontade com as duas lendas do balé brasileiro, mas o deslumbramento persiste.
— Quando estava no Sul, imaginava dividir o palco com esses ídolos. É sonho realizado, tenho as duas por ícones — conta o ex-militar gaúcho, que mora em Ipanema.
Ao se desligar do quartel, pensava que seria um desafio, talvez inalcançável, entrar no Theatro Municipal do Rio. Mas foi contratado antes do que esperava, e para montagens clássicas como o Lago dos Cisnes, o Quebra-Nozes, a Bela Adormecida, Coppélia.
Outra satisfação foi ingressar, em 2004, no seleto Grupo Dissídio Coletivo (DC), formado por virtuoses do Theatro Municipal. Dirigido por João Wlamir, o DC foi criado para poder dançar balé contemporâneo — não apenas o clássico. Já fez turnês pela Alemanha, Áustria e Suíça.
Ser bailarino é uma façanha em si, mas Marcelo tem outros talentos. Dirigiu a Companhia Thalmah de Dança, fundada em 2006, que foi desfeita — isso é inacreditável! — devido ao próprio sucesso. Um especialista alemão entusiasmou-se com a performance do grupo e levou metade dos componentes, hoje eles colhem aplausos no Balé de Hagen.
Casado com a arquiteta Letícia, 31 anos, e pai de Thiago (10 anos, que mora na cidade gaúcha de Candelária, nasceu de outro relacionamento), Marcelo poderia estar brilhando em palcos do Exterior. Mas prefere ficar aqui, contribuir para a afirmação do estilo nacional de balé contemporâneo. Acha mais autêntico dançar as raízes culturais brasileiras, não copiar modelos estrangeiros.
— É aquela coisa de não querer sair do país, pelo resto da vida — anuncia.

Domingo é dia de caça submarina
A estratégia de Marcelo é mostrar o potencial verde-amarelo em outros países, mas logo voltar. Deverá ir pela terceira vez a Portugal, a convite do governo lusitano, para se apresentar como bailarino e coreógrafo, ao lado de artistas de várias nacionalidades. Em outubro, pretende retornar a Nova York, onde o espetáculo Brazilian-Indian Conection lotou três teatros, ano passado.
Os dotes de Marcelo também abriram alas na Marquês de Sapucaí. Neste Carnaval, ganhou o prêmio S@mba-Net pela Império Serrano, como Melhor Comissão de Frente. Já havia se destacado na Tijuca e na Tradição. Na verdade, a veia carnavalesca surgiu em Pelotas, onde viveu, com a Unidos do Fragata.
A paixão pela dança irrompeu aos 14 anos, no Twugueb’s, de Pelotas. Quando se alistou nas Forças Armadas, continuou ensaiando nas horas de folga. O ambiente era marcial, mas nenhum engraçadinho se atrevia a zombar daquele tenente que estraçalhava nos testes físicos. Ao contrário, assistiam às exibições, na primeira fila, boquiabertos.
No Rio de Janeiro, Marcelo exercita-se todos os dias, incluindo aula de pilates. Aos domingos, pratica caça submarina com amigos da época do Twugueb’s. Mergulhando sem tubo de oxigênio, no Corcovado ou em Angra, captura garoupas e badejos com o arbalete.
Marcelo foi um irrepreensível ganso de passos ritmados no Exército. Mas foi se realizar, esbelto na silhueta de 1m77cm e 67 quilos, a dançar com a elegância de um cisne.