Emissários da paz, nossos soldados choram seus mortos, não têm folgas, dormem menos de quatro horas ao dia e garantem que não abandonarão a tarefa de reconstruir um país. Claudio Dantas Sequeira (IstoÉ) - Lidar com situações limites faz parte da rotina militar. Muito mais difícil, porém, é enfrentar o cenário infernal como o que surgiu no Haiti depois do terremoto de quase duas semanas atrás. Ao desembarcar em Porto Príncipe na terça-feira 19, fui testemunha da luta de nossos soldados para vencer, ou para atenuar, o clima de caos e desespero que tomou conta do povo haitiano. Logo no aeroporto, sob controle dos americanos, os militares brasileiros se mostram perfeitamente adaptados à cultura local, usando expressões do dialeto creóle (derivado do francês) na comunicação via rádio e até bandanas amarradas à cabeça. Já as patrulhas, que são obrigadas a cruzar a cidade em veículos abertos, não dispensam o colete e o capacete azul. A máscara cirúrgica também passou a integrar o uniforme, numa tentativa de minimizar o odor insuportável dos corpos que apodrecem sob os escombros de casas e edifícios. Sete dias depois do tremor que devastou a capital haitiana, as ruas de bairros como Carrefour e Citè Militaire ainda cheiram a morte. Mais urgente é a ajuda humanitária para atender um milhão de desabrigados. Apesar de a logística ser atribuição dos Estados Unidos, os militares brasileiros, além das ações de segurança, têm se encarregado de tarefas de distribuição de água e mantimentos. Na base General Bacellar, sede do Batalhão de Infantaria da Força de Paz (Brabatt), haitianos famintos se reúnem em filas quilométricas todos os dias. De hora em hora, pequenos grupos são autorizados a entrar para pegar garrafas de água. Muitos feridos também buscam ajuda no local. A enfermaria, montada de improviso num pátio de estacionamento, é formada de tendas e macas. Está superlotada. Os casos mais graves são transferidos para o hospital de campanha montado pela Aeronáutica. “Temos atendido muitos casos de lesões na pele e esmagamentos causados pelos escombros”, explica o major João Couto. Ele compara o movimento ao de uma emergência de hospital público em São Paulo. Mas a cena de corpos mutilados parece ter saído de um ambiente de guerra. Ao falar com ISTOÉ, o major Couto tinha acabado de atender Rudolf, o bebê da haitiana Marie Santelais, ferido na cabeça e no braço direito, que foi amputado. A criança, de 1 ano e 8 meses, ainda é muito nova para compreender o que lhe ocorreu. A mãe, uma dona de casa que vende abacate para sustentar a família, parece resignada. “Você tem comida ou água para mim? Você tem dinheiro para me ajudar a reconstruir minha casa?”, me pergunta. Não tenho uma resposta adequada. O major diz que casos como o de Rudolf são frequentes: “Já fiz cinco amputações. A mais grave foi a de um paciente que teve as pernas esmagadas.” Vários dos feridos gemiam, os médicos-soldados faziam o que podiam, como curativos de emergência. Comandante do Brabatt, o coronel João Batista Carvalho Bernardes conta que “nos primeiros dias os haitianos largavam seus mortos na nossa porta”. O governo haitiano estima o número de mortos em 75 mil. Os feridos seriam 350 mil, e haveria um milhão de desabrigados. Desde o terremoto, o coronel Bernardes teve sua rotina virada de ponta cabeça. A cada minuto, segundo ele, surge uma nova crise. As horas de sono se encurtam, as atividades físicas e de lazer foram eliminadas das escalas diárias. A prontidão é absoluta e o nível de stress desafia a resistência emocional. “Fiquei acordado nas 48 horas seguintes ao terremoto e tenho dormido apenas quatro horas por noite”, diz o comandante das forças brasileiras. A situação da tropa não é diferente. As patrulhas ocorrem durante o dia e também à noite, quando na cidade, às escuras, aumenta o temor de um eventual ataque de gangues que voltaram a operar. A tensão dos soldados é visível. Mas, graças ao domínio de expressões do creóle, os militares trocam saudações com a população e procuram manter a calma. Na volta ao quartel, os soldados tomam banho quente e jantam. O prato inclui carne de panela, batatas e uma salada de frutas. No refeitório, um quadro de avisos traz mensagens de apoio de familiares no Brasil. Na televisão, passa a novela das 21h. Antes de se recolherem, nos contêineres adaptados com quatro camas de campanha, eles têm que entregar um informe sobre a situação em campo. Os mais cansados vão logo dormir, pois o dia seguinte começa cedo. Quem ainda tem um pouco de energia aproveita a presença dos visitantes, entre jornalistas e diplomatas, para conversar. No bate-papo, todos falam da saudade de casa, do azar dos companheiros que morreram pouco antes do retorno ao Brasil e lamentam as agruras do povo haitiano. Após a cerimônia póstuma, ocorrida na noite da terçafeira 19, quando os corpos dos militares foram enviados ao Brasil, a maioria dos soldados apresentava abatimento. Um cabo, que pediu para não ter seu nome publicado, não via a hora de abandonar aquela terra de dor e voltar para os braços da família. “Se me dessem cinco minutos para arrumar minhas malas e sair daqui, não pensaria duas vezes.” Seis meses é o tempo limite para permanência na missão. Durante esse período, a vida é uma espécie de confinamento. Dentro da base, que se tornou o centro nevrálgico das operações brasileiras, o clima é de apreensão. Normalmente, o local concentra em média 500 a 600 soldados, de um contingente total de 1.266 militares destacados no Haiti. Também há pelotões do Chile, do Equador e até do Nepal. Mas com a chegada de equipes de bombeiros e enfermeiros militares, além da presença de diplomatas e jornalistas, a base alcançou seu limite e a ampliação dos esforços para a reconstrução do país vai requerer novas instalações. Toda a infraestrutura montada reflete a intenção do Brasil em manter por bastante tempo sua presença no Haiti. Potentes geradores produzem energia suficiente para uma pequena cidade. Há uma academia de ginástica, telefones públicos e internet, o que permite o contato frequente dos militares com suas famílias no Brasil. Em tempos normais, quando algum soldado apresenta sintomas de stress, o médico lhe recomenda uma folga. Depois do terremoto, porém, os dias de descanso foram suspensos. E a rotina dos soldados brasileiros no Haiti tornou-se ainda mais amarga e dramática. Quem percorre as estreitas ruas de Bel Air, o bairro mais atingido pelo terremoto, depara-se com uma paisagem desoladora, que certamente não constava de nenhum dos manuais reparatórios de missões de paz da ONU. Quarteirões inteiros sucumbiram ao tremor. Focos de incêndio surgem a cada momento, pessoas arriscam a vida sobre escombros em busca de comida ou algo de valor. Há poucos dias, os capacetes azuis tiveram que usar escavadeiras para desobstruir avenidas tomadas por montanhas de corpos. Na favela de Cité Soleil, a maior do Haiti, a força brasileira mantém uma unidade, em frente à qual uma enorme aglomeração bloqueia a rua para pegar a água não potável de um encanamento que se rompeu. Os militares tentam em vão organizar uma fila. Por diversas vezes, durante o percurso, impressionado com o que via, comentei com um soldado que me acompanhava na caçamba de um caminhão da ONU: “Vinte anos não serão suficientes para reconstruir este país.” Ao que ele me respondia, otimista: “Nada disso. Vamos reerguer o Haiti das cinzas.” Pode ser que ele tenha razão, mas não será nada fácil. Até agora, nem o governo nem a ONU conseguem estimar o prejuízo deixado pelo terremoto. Fonte: IstoÉ |
29 de janeiro de 2010
HAITI: AMARGA ROTINA DE UMA MISSÃO BRASILEIRA
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