12 de fevereiro de 2018

De generais a soldados, militares venezuelanos buscam atendimento médico no Brasil

Militares venezuelanos buscam atendimento médico no Brasil
Consultas têm sido realizadas sem conhecimento prévio de autoridades dos dois países
Imigrantes venezuelanos recebem ajuda da Fundação Pan Americana, em Roraima
Fabio Gonçalves/Fotoarena / Agência O Globo / Agência O Globo
MATEUS COUTINHO
BRASÍLIA — Tarde de domingo, 21 de maio de 2017, o general de brigada do Exército venezuelano Silvano José Torres Oñates, de 46 anos, atravessa a fronteira de seu país rumo à capital de Roraima, Boa Vista, sem informar oficialmente às autoridades militares brasileiras e sem se identificar como integrante das Forças Armadas do país vizinho. Sua discrição tinha um motivo: como membro da cúpula militar que apoia o presidente Nicolás Maduro, ele vinha ao Brasil em busca de atendimento médico após sofrer uma fratura no fêmur.
Prontuários de atendimentos realizados no principal hospital de Boa Vista obtidos pelo GLOBO revelam um fluxo de militares venezuelanos em busca de socorro, sem que o Comando do Exército seja previamente informado. O movimento chamou a atenção do serviço de inteligência do Exército.
O caso de Oñates — e de pelo menos outros três militares venezuelanos cujas identidades foram comprovadas pela reportagem — revela que até integrantes de alta patente do país vizinho estão ingressando em território brasileiro para obter socorro médico para casos como fraturas, meningite e até extração de um osso de galinha preso à garganta.
A Venezuela vive uma grave crise econômica, que começou com a queda do preço de petróleo, principal produto de exportação. Sem reservas de moeda forte, o país enfrenta dificuldades para comprar produtos no exterior, com o desabastecimento de alimentos e remédios chegando a 80% — o que poderia explicar a procura por atendimento médico no Brasil.
Duas horas depois de Oñates dar entrada no Hospital Geral de Roraima (HGR), o capitão do 513º Batalhão de Infantaria de Selva Jairo Jose Lotero Mendoza também chegou ao hospital. Os dois apresentavam fraturas expostas no fêmur e na tíbia, e deram justificativas contraditórias para os ferimentos. Enquanto o “motivo do atendimento” de Oñates foi registrado como “outros”, o de Mendoza aparece como “acidente de moto”. Além disso, apenas o prontuário do capitão o identifica como “militar”, enquanto o do general não informa sequer seu documento de identidade.
O Exército brasileiro constatou que os dois se acidentaram na explosão de um morteiro durante um exercício militar no município de Santa Elena de Uairén, a 80 km da fronteira com o Brasil. A cidade venezuelana conta com hospital e aeroporto e está a cerca de 231 km de Boa Vista.
Ambos foram submetidos a cirurgias e, no caso do general, um relatório médico do dia 24 informa que ele se acidentou com “artefato explosivo, arma militar”, sem dar detalhes. No caso do capitão, porém, não há descrição.
Procurado em Brasília, o Comando Militar reconheceu que apenas soube, e “informalmente”, da presença dos militares estrangeiros quando eles já estavam internados no hospital de Boa Vista, a 215 quilômetros da fronteira.

Morte em leito brasileiro
O Exército confirmou que o general Oñates deixou o país no dia 29 após receber alta. Os militares brasileiros o acompanharam até o aeroporto de Boa Vista, de onde partiu para Caracas. Mendoza, por sua vez, retornou ao seu país no dia 26, também acompanhado até a fronteira.
Cinco meses depois de o general e o capitão serem atendidos, soldados também vieram ao Brasil em busca de socorro médico sem informar às autoridades e sem se identificar como militares. Diferentemente de seus superiores, contudo, eles não estavam na região de fronteira, mas lotados no município de Luepa, a 180 km de Santa Elena de Uairén, em direção ao interior da Venezuela.
No dia 18 de outubro de 2017, o soldado Luís Fernando Guiana Maraima deu entrada no HGR. O motivo: estava engasgado havia um dia com um osso de frango na garganta e com febre. No caso dele, o Exército brasileiro disse que só foi informado da presença por telefone após o atendimento de urgência. O Exército também informou que, após ser avisado, acompanhou-o até o país vizinho. No prontuário também não consta o documento de identidade, telefone ou mesmo a ocupação de Maraima.
Sete dias depois, foi a vez do soldado Edgar Jesus Losano Flores, de 20 anos, dar entrada no HGR. Diferente dos outros, porém, ele foi encaminhado por médicos venezuelanos do Instituto de Saúde Pública do estado de Bolívar, no município de Ciudad Bolívar, a 700 km de Santa Elena. De acordo com o Exército brasileiro, ele passou pelos postos de saúde de Santa Elena e Pacaraima até chegar ao Hospital Geral de Roraima.
O soldado foi encaminhado devido à suspeita de meningite. Em seu prontuário também não é informada a ocupação. O diagnóstico se confirmou, mas ele não resistiu à doença e morreu 14 dias depois. Neste caso, o Exército brasileiro também admite que foi feito um “contato informal”, sem identificar de quem, somente após a morte do soldado e, a partir daí, passou a acompanhar o episódio.
A reportagem tentou contato com a embaixada venezuelana em Brasília por telefone na quinta-feira, mas ninguém atendeu, e encaminhou e-mail. Na sexta, a reportagem foi até a embaixada, quando foi informada que a responsável pela Comunicação estava de férias. A funcionária, contudo, informou o endereço de e-mail para encaminhar a demanda, que ainda não foi respondida.
O Exército informou que monitora a entrada de militares estrangeiros “por meio de informações recebidas das autoridades venezuelanas e brasileiras” e que não tomou ciência da entrada de mais militares venezuelanos em busca de atendimento médico e/ou refúgio, além das levantadas pela reportagem.

Consultas em Roraima crescem com chegada de imigrantes
Em reunião no Planalto para discutir a crise migratória que atinge Roraima após o aumento do ingresso de venezuelanos, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, desabafou, segundo interlocutores presentes ao encontro: “Ninguém sabe o que fazer com o país vizinho.”
Naquela ocasião, em 30 de janeiro, o ministro já fora informado do entra-e-sai de militares do país vizinho, mas tinha uma preocupação humanitária maior e urgente: como recepcionar os cerca de 70 mil venezuelanos que entraram no Brasil.
Recentemente, a prefeitura de Boa Vista anunciou que os imigrantes já chegam a 40 mil, o que equivale a mais de 10% da população de cerca de 330 mil moradores do município.
Os números coincidem com o aumento nos atendimentos nos hospitais do estado. Segundo o governo de Roraima, na rede pública local saltou de 766, em 2014, para 18.241, em 2017, um aumento de 2.281%. Considerando apenas imigrantes, o número médio de venezuelanos atendidos por mês saltou de 63, em 2014, para 1.520, em 2017.
Ainda de acordo com o governo estadual, o aumento nos atendimentos foi maior principalmente nos casos de média e alta complexidade, o que pressiona ainda mais a estrutura de saúde local. Foi neste cenário que a governadora Suely Campos (PP) solicitou um aumento no repasse de verbas do SUS para o estado, que possui um déficit de 37% no financiamento da saúde, o equivalente a R$ 2,4 milhões.

Reforço do policiamento
Naquela reunião em Brasília, além de Jungmann, também estavam presentes os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil), Sérgio Etchegoyen (GSI), Torquato Jardim (Justiça), Osmar Terra (Desenvolvimento Social) e o líder do governo do Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), que chegou a defender o fechamento da fronteira. A ideia porém, foi descartada devido ao grande desgaste internacional que causaria.
Na ocasião ficou definido que o governo vai realizar um censo para identificar os perfis de imigrantes venezuelanos e que devem ser implementadas medidas para aumentar o controle para a entrada dos estrangeiros. Na última quinta-feira, 8, Jungmann, Etchegoyen e Torquato Jardim estiveram em Boa Vista.
Após a viagem na semana passada foram anunciadas medidas como o reforço do policiamento na fronteira e até a proposta de levar os imigrantes para outros estados. Torquato Jardim anunciou que a ideia é atender até mil venezuelanos em 90 dias.
Enquanto o governo estuda as alternativas, o número de imigrantes não para de crescer. Segundo a Polícia Federal, de 2014 a 2017 os pedidos de refúgio de venezuelanos saltaram de 21 para 14.231. Ainda de acordo com o órgão, somente no ano passado entraram em Roraima 70 mil venezuelanos. Em janeiro deram entrada no país 12,1 mil.
O Globo/montedo.com

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