Sob a justificativa de seu aparelhamento e o guarda-chuva pseudopolítico da subordinação dos "militares ao poder civil", intenta-se a mais profunda intervenção política na área militar já vista na tão decantada história republicana do Brasil.
Por Sérgio Paulo Muniz Costa
Enquanto usa sua maioria parlamentar para defletir uma miríade de polêmicas, o governo federal vai fazendo avançar sem resistências um assunto que trará consequências duradouras à vida política no país: a missão, o emprego e a estruturação das Forças Armadas.
Sob a justificativa de seu aparelhamento e o guarda-chuva pseudopolítico da subordinação dos "militares ao poder civil", intenta-se a mais profunda intervenção política na área militar já vista na tão decantada história republicana do Brasil.
A moldura desse quadro estava pronta havia tempos. Os ressentimentos de toda sorte em relação ao regime militar, a ânsia dos poderosos de cada momento em exibir obediência castrense e os interesses estrangeiros em formatar nossa estrutura de defesa segundo suas conveniências ambientaram o mal disfarçado projeto hegemônico de longo prazo que agora se estende às Forças Armadas.
Um simples acompanhamento do planejamento e da execução orçamentários permite verificar que o Ministério da Defesa extrapolou em muito, há tempos, as atribuições previstas na lei de sua criação.
Mas foi no início do segundo mandato presidencial que se inaugurou uma nova escalada de confrontação com as Forças Armadas, em particular com o Exército.
Alguns ministros depois -novos titulares de pastas criadas e inventadas-, foram enviesadamente apresentadas medidas caudatárias de uma Estratégia Nacional de Defesa que não se coadunam com a Política Nacional de Defesa, alteram as condições de cumprimento da missão constitucional das Forças Armadas e dão ao poder político condições de intervir partidariamente na estrutura militar, um pesadelo erradicado da vida pública brasileira há mais de 40 anos.
A inauguração da atual República em 1985 foi a única na história do Brasil que não se deu por um golpe de Estado, e isso se deveu, em boa parte, ao apartidarismo das Forças Armadas.
Ao contrário do que a maioria dos analistas costuma apontar, foi durante o regime militar que elas se afastaram da política partidária e se profissionalizaram definitivamente.
Deixar para trás o salvacionismo das primeiras décadas do século 20, as correrias de 1920 e 1930, o golpe de 1937 e a intervenção pela retomada democrática em 1946, deteriorada com a instabilidade dos anos 1950, que culminou na ruptura de 1964, foi uma consistente evolução.
É compreensível que governos atuem ideologicamente, explorando oportunidades de aperfeiçoamentos sociais, políticos e econômicos. Mas não é razoável implementar modificações na estrutura do Estado que colidam com a evolução histórica do país e tenham o potencial de trazer instabilidade. Muito menos sensato é introduzir os objetivos de grupos de pressão hospedados no governo como variáveis da complexa equação da Defesa nacional.
A alguns causará estranheza isso estar acontecendo, acomodados na percepção de que a questão é afeta aos militares.
Além de não se tratar de uma exclusividade, é fácil verificar na leitura da Estratégia Nacional de Defesa que ela foi redigida à revelia e mesmo em contraposição a ponderações de comandos das Forças Armadas.
Alegações de tomada de modelos estrangeiros não resistem à mais elementar comparação, considerada a irrelevância político-estratégica de uns e a política do "faça o que eu digo, mas não o que eu faço" de outros.
De fato, o emprego das Forças Armadas como elemento vital para a preservação da soberania e da democracia no Brasil está sendo alterado pelo governo em exercício, e não cabe aos militares questioná-lo.
Àqueles que não podem evitar um sorriso de satisfação diante dessa situação, porque comemoram a subordinação do "poder militar ao civil" ou porque se comprazem nos seus sentimentos de revanche, cabe lembrar que o estamento militar se subordina ao poder político em qualquer regime, situação ou direção.
Se evoluímos como democracia responsável e consolidada, além dos arautos do governo, cabe à classe política se pronunciar quanto ao aparelhamento das Forças Armadas que realmente interessa ao Brasil.
Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador. Foi delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa, órgão de assessoria da OEA (Organização dos Estados Americanos) para assuntos de segurança hemisférica.
Originalmente publicado na Folha de São Paulo de 28 de outubro.
Comento:
Infelizmente, a análise do componente idelógico que permeia o projeto de reestruturação das Forças Armadas parece não ser a preocupação principal dos chefes militares.
A inconformidade dos fardados relaciona-se muito mais a extinção de vários cargos de oficial general, em consequencia da nova estrutura.