Usar problemas domésticos como justificativa para reduzir atuação internacional do Brasil é equívoco
Exército brasileiro na Missão de Manutenção da Paz (MINUSTAH) do Haiti em junho deste ano TEREZA SOBREIRA FOTOS PÚBLICAS |
OLIVER STUENKEL
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A ordem global atual caracteriza-se por um vácuo de poder sem precedentes, situação descrita como “mundo G-zero” e “sem líderes” por Ian Bremmer, presidente do grupo Eurasia, consultoria de risco político. Com os Estados Unidos cada vez menos capazes ou dispostos a assumir liderança e prover bens públicos globais, a urgência de que outros fortaleçam sua atuação é imensa para que a comunidade internacional possa lidar com os chamados ‘desafios sem fronteiras’ — como migração, instabilidade financeira e governança da internet. Na área de mudanças climáticas, por exemplo, a União Europeia e a China estabeleceram a chamada “aliança verde” em resposta à retirada dos EUA do Acordo de Paris.
Nesse contexto, a possibilidade de o governo brasileiro enviar tropas para participar da MINUSCA, missão de paz da ONU na República Centro-Africana, é uma excelente notícia, tanto para o interesse nacional brasileiro quanto para a ordem internacional. O Ministério da Defesa considera o envio, em 2018, de aproximadamente 800 soldados, o equivalente a um batalhão de infantaria, ao país onde um quinto da população está internamente deslocado por causa da guerra civil. A situação na República Centro-Africana está pior do que a do Haiti, onde capacetes azuis brasileiros atuaram ao longo dos últimos anos. Mesmo assim, há semelhanças com a ilha caribenha, dando às tropas brasileiras — que têm preparo acima da média na ONU — uma vantagem comparativa, e condições de ajudar a estabilizar a situação. Os ganhos para as Forças Armadas brasileiras seriam significativos, ao manter militares na ativa, ao aperfeiçoar conhecimento em logística e ao reforçar sua projeção de poder (capacidade de um exército de projetar força distante do seu próprio território). Os soldados brasileiros voltariam ao Brasil com uma experiência internacional relevante e mais habilidades de comunicação intercultural. Em função da complexidade da situação na República Centro-Africana, a Força Aérea Brasileira teria aeronaves (inclusive o Super Tucano e helicópteros Black Hawk) atuando em áreas de conflito pela primeira vez desde a 2.ª Guerra Mundial. Dito de outra maneira, sofisticaria e tornaria mais versátil o hard power brasileiro — nada trivial em um cenário global altamente imprevisível.
Além disso, o envio de tropas teria um baixo impacto no orçamento, pois se trataria apenas de uma realocação do número de soldados que saiu do Haiti e não de um aumento na participação brasileira em missões de paz. Outro ponto muitas vezes ignorado é que a ONU repassa ao governo brasileiro uma quantia considerável por sua atuação em uma missão de paz, reduzindo, assim, o custo ao contribuinte nacional. É verdade que seria necessária a abertura de uma embaixada brasileira em Bangui, mas as implicações financeiras seriam modestas.
Críticos poderiam questionar: já que o Brasil atravessa um momento de crise política e econômica, por que não deixar as potências estabelecidas cuidarem dos assuntos internacionais mais complexos? Tal indagação é perigosa por duas razões. Em primeiro lugar, durante as últimas décadas, os países ricos se mostraram incapazes de resolver sozinhos os principais problemas internacionais. Abdicar das responsabilidades, em tempos como estes, para deixar o futuro da ordem global nas mãos de um pequeno grupo de atores carente de legitimidade e, muitas vezes, também de conhecimento adequado, seria altamente imprudente. Os dramáticos fracassos no enfrentamento de questões como as mudanças climáticas, a volatilidade financeira e as violações de direitos humanos ao longo das últimas décadas são claros indicadores de que novos atores — como Brasil, China e Índia — precisam contribuir para a busca de soluções significativas. Pior ainda: estabelece uma narrativa centrada no Ocidente, segundo a qual só países ricos têm obrigação ou legitimidade para dar respostas às questões internacionais complexas.
Em segundo lugar, uma política externa assertiva não é incompatível com a priorização de problemas domésticos. Muito pelo contrário: é uma ferramenta essencial para enfrentar esses desafios. Por exemplo, levar adiante negociações comerciais com a União Europeia (que beneficiam a economia brasileira), fortalecer relações com a China (para aumentar investimentos em infraestrutura) e promover a integração regional (para combater tráfico de armas e de pessoas, assim como fortalecer a segurança nas fronteiras) são questões diretamente ligadas a interesses nacionais que afetam a vida diária da população brasileira. Relacionadas de forma mais indireta, porém não menos importante para os interesses nacionais, estão questões como a promoção da paz no Oriente Médio (com impacto direto no terrorismo global) e as negociações acerca da cibersegurança (para evitar ataques contra o sistema eleitoral). Mesmo quando interesses brasileiros não são diretamente afetados — como no caso da crise na República Centro-Africana —, uma atuação ativa do Brasil fortaleceria a legitimidade do país para influenciar debates sobre o futuro da África, tema prioritário devido à crescente crise migratória.
Não devemos, é claro, ignorar os riscos e os custos de o Brasil participar de mais uma missão de paz. Como foi o caso no Haiti, é possível antecipar a chegada de migrantes da República Centro-Africana às cidades brasileiras. Enquanto o Haiti enfrenta elevado grau de violência em função da pobreza e da desigualdade, a República Centro-Africana — um dos dez países mais pobres do mundo — vive uma complexa e sangrenta guerra civil sectária entre o governo do presidente Faustin Touadéra, milícias cristãs chamadas Anti-Balaka e uma coalizão das milícias muçulmanas Séleka, envolvendo estupros em massa e, segundo a ONU, o risco de um genocídio. Não por acaso é uma das maiores missões da ONU, com quase treze mil soldados e um orçamento de quase um bilhão de dólares.
Mesmo assim, a presença brasileira no país não só aumenta a chance de reduzir o sofrimento da população local, mas também enviaria um sinal inequívoco à comunidade internacional de que o Brasil mantém seu compromisso de trabalhar para um mundo mais estável, do qual dependemos para prosperar economicamente — mesmo no meio da pior crise política em décadas. A participação brasileira em uma eventual missão de paz na África, neste momento, merece, portanto, aprovação parlamentar e apoio da população. Afinal, cumpre lembrar que, internacionalmente, é de pouca relevância um país que se destaca no palco global em tempos de bonança, mas sai de cena em momentos de dificuldades domésticas.
EL PAÍS/montedo.com