Oficiais do Exército receberiam propina para autorizar venda de vidro.
Autorização é necessária para vidros de carros e capacetes militares.
Quem compra um carro blindado pensa que está protegido, que um ladrão pode atirar e a bala não vai passar. Mas uma fraude está colocando em risco a vida de muita gente que conta com a eficiência da blindagem.
Tem empresa que está sendo acusada de pagar propina a oficiais do alto escalão do Exército para receber autorização para vender vidros blindados, e até capacetes militares, que simplesmente não cumprem o que prometem. Se alguém atirar, a bala vai passar.
Por dois meses, os repórteres Maurício Ferraz e Diego Zanchetta investigaram essa grave denúncia de corrupção.
Quando o trânsito fica parado, muito motorista faz o seguinte: olha para um lado, olha para o outro e fica atento no retrovisor. O medo é que apareça algum ladrão.
Na capital paulista, a média é a seguinte: cinco carros são roubados por hora. Uma coisa passa pela cabeça: e se o bandido resolve dar um tiro?
Blindar o carro para se proteger. É isso o que muitos empresários, artistas, autoridades e profissionais de vários tipos fazem em todo o país.
Acham que estão seguros, mas pode não ser bem assim. O Fantástico revela que oficiais do Exército são suspeitos de receber propina para liberar a venda de vidros que não cumprem o prometido, não protegem como deveriam.
“Uma verdadeira fraude contra o consumidor que estava se operando”, diz o procurador da Justiça Militar Cláudio Martins.
Explosivos, armas, carros blindados. Quem fiscaliza esse tipo de produto controlado é o Exército. Tem que fazer todos os testes e só liberar para a fabricação e venda se estiver tudo correto.
Deveria ser sempre assim. Mas Laudenir Bracciali, presidente da Abrablin, a Associação Brasileira das Empresas Blindadoras, conta que ele próprio já teve que pagar propina a um militar.
Laudenir Bracciali: Eu tinha os documentos lá para serem liberados. Esses documentos estavam demorando muito. Eu comecei a cobrar insistentemente. Até que um dia, me fizeram uma proposta: 'Olha, nós podemos facilitar se tiver um pagamento'.
Fantástico: Quanto que cobraram?
Laudenir Bracciali: A pedida era entre R$ 500 e R$ 1500.
Fantástico: Por documento?
Laudenir Bracciali: Por documento. E eu paguei R$ 500 por esse documento.
Segundo o empresário, não havia nenhum problema com a blindagem dele e a propina, paga em 2013, foi só para acelerar a burocracia.
Ele procurou o Ministério Público e denunciou.
Fantástico: Para quem o senhor depositou?
Laudenir Bracciali: O subtenente Jorge, na época.
Fantástico: Na conta dele?
Laudenir Bracciali: Na conta dele.
Este mês, José Jorge dos Santos Filho subiu de patente e agora é primeiro-tenente do Exército. Nos últimos 14 anos, ele trabalhou na Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados, em Brasília.
A denúncia do presidente da Associação das Blindadoras contra o tenente Jorge se somou a várias outras, contra mais militares. Foram tantas, que a Procuradoria de Justiça Militar abriu um inquérito para apurar esses crimes. Só o tenente Jorge teria recebido mais de R$ 500 mil em propina, entre 2011 e 2014.
“Se nós temos facilidade para conseguir alguma coisa principalmente quando nós estamos falando de um produto que promete guardar a vida humana, isso é inaceitável”, afirma Laudenir Bracciali.
As investigações mostram que, além do tenente Jorge, outros 11 militares do Exército, inclusive três coronéis, estariam envolvidos no esquema que libera produtos que não protegem como deveriam.
O mercado de carros blindados está crescendo. Em média, são vendidos por mês, no Brasil, 1,3 mil veículos. O preço da blindagem vai de R$ 20 mil a R$ 80 mil.
Com a ajuda da computação gráfica, fica fácil entender como é um kit completo. Dá para reforçar toda a lataria com uma manta sintética, a mesma usada em coletes à prova de balas. O tanque de combustível também pode ser revestido com essa manta e com aço inox. Já o vidro é feito intercalando camadas de materiais muito resistentes. Um deles é um plástico especial, o policarbonato.
O Fantástico entrou no carro para explicar os diferentes tipos de blindagem, porque não é tudo igual, não. O nível 1 é o mais básico: nesse caso, a pessoa que está dentro fica protegida de tiros de revólver calibre .22 e .38, mas se o criminoso atirar com uma arma mais potente, aí a bala passa. Para evitar isso, a blindagem teria que ser mais forte. O nível 3A é o mais usado no Brasil. Aguenta até tiro de um revólver superpotente: calibre .44.
Quem compra um blindado confia no material. O problema é que a corrupção dentro do Exército não era só para liberar documentos.
A SER Glass é uma das maiores fabricantes de vidros blindados do Brasil. Está no mercado há seis anos. Em 2009, ela foi reprovada em dois testes do Exército. Os tiros de calibre .44 perfuraram o vidro nível 3A que a empresa queria vender.
Só que mesmo assim: “Ela fabricou e comercializou por muito tempo vidros blindados sem que ela tivesse a autorização formal do Exército Brasileiro”, conta Cláudio Martins, procurador da Justiça Militar.
A SER Glass acabou conseguindo uma autorização do Exército em 2010. Segundo a investigação, não houve nenhum novo exame balístico e o documento foi fraudado com ajuda de algum militar.
Marissandra Xavier Gonzalez foi diretora comercial da SER Glass.
Fantástico: Tinha pagamento de propina?
Marissandra Gonzalez: Sim. Eu nunca participei dos pagamentos em si. Mas eu sabia que tinha muito dinheiro envolvido.
A Procuradoria já descobriu que o tenente Jorge dos Santos Filho, da Diretoria de Produtos Controlados, recebeu dinheiro na conta depositado diretamente pelo dono da SER Glass, entre 2011 e 2014.
O militar não quis se manifestar. “Eu não tenho autorização do Exército para dar informação nenhuma”, disse.
Em nota, o advogado do tenente disse que seu cliente "jamais recebeu vantagens indevidas", que "todos os valores depositados nas contas dele têm justificativa" e que "ele só conferia a documentação, não tinha poder de decisão".
As primeiras denúncias contra a SER Glass surgiram em 2012. Nesse mesmo ano, a empresa tentou conseguir uma nova autorização, já que o Ministério Público já tinha indícios de fraude na antiga.
Um diretor procurou um major da reserva, com 30 anos de serviços prestados ao Exército. Segundo o militar, a proposta de corrupção foi clara.
“O pedido dele era para que, de alguma forma, custasse o que custasse, eu convencesse os oficiais do Exército, que aprovasse um vidro dele”, conta Willian Amaral Junior, major da reserva.
O major Willian denunciou a SER Glass ao Exército e ao Ministério Público. “Produziam produto e colocavam a sociedade em risco”, diz.
A então diretora comercial da SER Glass se casou, em 2010, com Fábio Santos, o dono da empresa. Três anos depois, eles se separaram. Marissandra já prestou dois depoimentos ao Ministério Público, afirmando que a propina chegou a ser paga em dinheiro vivo a militares do Exército.
Fantástico: Os clientes não estão protegidos?
Marissandra Gonzalez: Não, não estão.
O Ministério Público de São Paulo também recebeu denúncias e começou a investigar. Em 2013, decidiu fazer um teste. De 12 vidros da SER Glass, 9 foram perfurados por tiros de calibre .44.
Se fosse uma situação real, o motorista teria sido atingido duas vezes. “Eu presenciei os testes e passaram as balas. E mesmo assim, as vendas continuaram”, diz Marissandra Gonzalez.
Entre os militares suspeitos de envolvimento no esquema, está o major Guilherme Bittencourt, que foi chefe dos exames balísticos do Exército, entre 2004 e 2009. Ele frequentava a SER Glass.
Fantástico: Quando eles apresentaram o major para você, eles falaram o quê? Ele é um consultor...
Marissandra Gonzalez: Que era uma pessoa muito importante, que iria ajudar a gente dentro do processo.
Mesmo estando ainda na ativa, o major Bittencourt escreveu um parecer contestando os testes do Ministério Público nos vidros da SER Glass.
O major ainda desenvolveu um projeto de um novo tipo de blindagem, para a lataria do carro. O material está sendo produzido exclusivamente pela empresa, sob instruções do militar. Isso não é permitido, diz a procuradoria.
“Uma relação contratual entre um oficial da ativa e a empresa que é fiscalizada ou deveria ter sido fiscalizada pelo Exército brasileiro”, diz Claudio Martins.
A convite da SER Glass, o major Bittencourt e outros militares do setor produtos controlados do Exército assistiram de camarote a etapas do campeonato de Stock Car, em 2012.
“Bebida à vontade, comida. Podia gastar à vontade”, diz Marissandra Gonzalez.
Em uma das corridas, no Rio de Janeiro, os principais oficiais do Exército responsáveis pelos testes balísticos estavam no camarote da SER Glass. Cinco dias depois, esses mesmos militares aprovaram uma nova autorização para a empresa fabricar vidros blindados.
“Mais do que uma conivência, uma convivência”, afirma Cláudio Martins.
O major Bittencourt não quis gravar entrevista. Mas disse que se arrepende de ter feito o parecer a favor da SER Glass, pelo qual cobrou R$ 3 mil, e negou ter recebido propina.
O dono da empresa defendeu o militar.
Fabio Santos: Ele, como um engenheiro, ele estava prestando uma consultoria.
Fantástico: Ele é seu sócio?
Fabio Santos: Não, não é meu sócio.
Fantástico: Mas tem hoje uma relação comercial com ele?
Fabio Santos: Não, não tenho. Ele... Não, assim. Ele desenvolveu um produto, uma tecnologia nova. E a gente começou a comercializar esse produto hoje.
Fantástico: E quanto ele ganha pra isso?
Fabio Santos: Ele não ganha nada.
Fantástico: O senhor já pagou propina para o Exército? Para alguém do Exército?
Fabio Santos: Jamais, jamais pagamos qualquer valor em propina para o Exército.
Sem desconfiar do perigo, empresários, artistas, integrantes do Judiciário e até chefes de Estado já andaram em veículos que têm vidros da SER Glass.
A Polícia Federal, por exemplo, comprou 36 carros blindados para transportar autoridades, como presidentes e ministros de outros países. Os veículos foram usados durante a Copa do Mundo. A responsabilidade pela blindagem era da fabricante dos carros, informou a Polícia Federal.
O Exército constatou, em maio de 2013, que os vidros da SER Glass estavam irregulares. Mas, segundo o Ministério Público, nenhum foi retirado do mercado. E a venda continua.
O Fantástico testou os vidros blindados. Nos testes oficiais, são cinco tiros. Nenhum pode furar o vidro. Como a blindagem que a SER Glass promete é nível 3A, as balas têm que ser calibre .44.
Do primeiro ao quarto tiro, o vidro aguentou. Mas no quinto, blindagem reprovada. Como mostra a supercâmera lenta.
O Fantástico repetiu o teste, em outro vidro da SER Glass. Nesse caso, a blindagem falhou já no segundo tiro. E, depois, no quinto disparo.
O Fantástico testou vidros de outras três marcas. Todos suportaram os cinco tiros, do mesmo calibre.
O dono da SER Glass diz que a empresa dele tem 25% do mercado, que as denúncias foram inventadas pelos concorrentes, que a documentação está correta e que os vidros dele são seguros. “Eu me comprometo com qualquer cliente que tiver qualquer dúvida pode trazer o vidro, eu fico dentro do carro, e a gente atira”, diz Fábio Santos, dono da SER Glass.
E o Major Bittencourt e o Tenente Jorge, suspeitos de envolvimento no esquema?
O comando do Exército, em Brasília, informou que os dois militares receberam uma punição, foram transferidos para outros setores; que está colaborando com as investigações e tem todo o interesse em esclarecer os fatos.
Fantástico: O consumidor que comprou esses vidros ele tá tranquilo?
Major Marcos Lopes do Nascimento, Diretoria de fiscalização de produtos controlados: Se o produto foi avaliado de acordo com as normas do Exército, ele pode ficar tranquilo.
Fantástico: Está faltando fiscalização?
Major Marcos Lopes do Nascimento: Não. Não está faltando fiscalização.
O Fantástico também perguntou sobre o fato de militares frequentarem camarotes com tudo pago pela SER Glass. “Não tenho conhecimento desse fato”, diz o major Marcos Lopes do Nascimento.
Mas o Fantástico descobriu que o próprio major Lopes, esse que fala em nome do Exército, também já esteve com a família em um evento automobilístico da SER Glass, em São Paulo.
Procurado nesse domingo (28) pelo Fantástico, o Exército disse que até o momento não há suspeitas de irregularidades contra o major Lopes.
Além do caso da blindagem, existe outras denúncias contra a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército.
Por exemplo: a compra de 22 mil capacetes, no ano passado. O valor total: R$ 55 milhões.
Nos testes oficiais do Exército, o tiro com um revólver calibre .44 não perfurou o capacete. Mas....
“Ele penetrava tão fundo que ele atingia o que se chama de placa testemunho, que fica basicamente no centro da cabeça do soldado que vai vestir aquele capacete”, revela o procurador Cláudio Martins.
“Essa deformação é normal para qualquer capacete balístico, de qualquer fabricante do mundo. Os soldados estão seguros”, garante o major Marcus Vinicius Martins, da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados.
Os capacetes desse mesmo modelo estão sendo usados por militares no Haiti e no Rio de Janeiro.
Para comprovar a segurança, o Exército mostrou um vídeo ao Fantástico.
O militar leva um tiro no capacete e sobrevive. O detalhe é que ele não é da mesma marca dos 22 mil comprados no ano passado. Esta semana, a Justiça Federal suspendeu o pagamento dos R$ 55 milhões, até a conclusão das investigações.
Quanto à SER Glass, o Ministério Público quer que ela indenize os clientes e troque todos os vidros suspeitos que já foram vendidos.
“Nós não estamos vendendo qualquer produto. Se houver uma falha, com certeza uma vida humana vai ser perdida”, afirma Laudenir Bracciali, presidente da Associação Brasileira das Blindadoras.
Fantástico/montedo.com