Irlandeses promoveram série de revoltas no Rio de Janeiro em protesto contra seu recrutamento forçado para a Guerra da Cisplatina
Na litografia, embarque de tropas na Praia Grande, hoje Niterói, para Montevidéu, na Guerra da Cisplatina. A falta de contingentes para o conflito foi o motivo do recrutamento dos irlandeses. |
Gilmar de Paiva dos Santos Pozo
Em tempos de guerra, toda ajuda é bem-vinda. E os métodos para obtê-la nem sempre são os mais legítimos. Foi o que ocorreu durante o Primeiro Reinado, quando D. Pedro I se viu diante da falta de contingente militar para lutar na Guerra da Cisplatina (1825-1828). A saída foi recorrer ao recrutamento de estrangeiros na Europa.
Seguindo ordens diretas do Conde do Rio Pardo, comandante das armas na corte, a missão coube ao coronel William Cotter (1781-1833), enviado ao Reino Unido em 1826 para arregimentar “quinhentos recrutas, ou os que puder obter no menor espaço de tempo possível, no mais tardar dentro de nove meses”. Veterano da Guerra da Península – parte do processo de expansão de Napoleão no território português – combatendo pelo exército português, Cotter tinha sido empossado no comando do batalhão de estrangeiros devido à sua experiência militar e ascendência irlandesa.
O problema é que Cotter estava incumbido de uma missão considerada ilegal em território britânico. Desde 1819, a lei local impedia o alistamento de seus cidadãos em forças estrangeiras. Por isso recrutou homens na Irlanda sem revelar os verdadeiros objetivos da empreitada, ou seja, omitindo os fins militares. Parte dos engajados trouxe suas famílias, na ilusão de se tornarem colonos, e Cotter deixou claro em suas cartas que “não tinha outro remédio senão trazer muitos casados para enganar as autoridades”. John Armitage, negociante inglês que residiu no Rio de Janeiro entre 1808 e 1831, observou que entre as promessas contratuais para os imigrantes irlandeses estava a de que cada homem “receberia de salário o equivalente a um shilling”, quantia significativa para a população pobre da Irlanda naquele período, tendo em vista as inúmeras crises de fome pelas quais passava a ilha. Além disso, “os que trouxessem os seus próprios utensílios” receberiam terras para morar e produzir. Quando chegassem ao Brasil, os irlandeses seriam surpreendidos com um contrato que deixava claro que o serviço militar seria obrigatório por cinco anos, antes de poderem se assentar como colonos.
Em 29 de setembro de 1827, chegaram ao Rio de Janeiro, a bordo do brigue Rectrieve, os primeiros colonos irlandeses, e nos meses seguintes, outras oito embarcações vindas da Irlanda trouxeram mais de 2 mil colonos, entre homens, mulheres, crianças e idosos. Depois de mais de 50 dias atravessando o Atlântico, confinados em embarcações inapropriadas, a cena de seu desembarque não foi nada gloriosa, como deixou claro o periódico Aurora Fluminense: “Um grande número de irlandeses desembarcados no largo do Paço sexta-feira excitaram a compaixão de numerosos espectadores, que estavam postos ao redor de mulheres em trajes esfarrapados com seus pequenos no colo, de homens brancos quase nus, ou cobertos com trapos de miséria, e de meninas de uma figura esbelta, cujos semblantes e olhos azuis contrastavam com os rostos decrépitos de muitas velhas irlandesas, que vinham com elas”. Dois navios, Reward e Charlotte Maria, naufragaram, tornando a viagem ainda mais dramática. Um relato recuperado no obituário de Nancy Clancy, que teria aproximadamente 5 anos, publicado em 1917 no Foster´s Daily Democrat, dá ideia do terror por que passaram. Depois que seu irmão mais novo morreu de febre amarela na viagem, o corpo foi usado para pescar um tubarão que estava seguindo a embarcação. Após a cerimônia de enterro da criança, retirada das entranhas do peixe, sua carne foi dividida entre todos os passageiros famintos.
O cotidiano na capital do Império seria uma sequência de desapontamentos. Os irlandeses ficaram confinados inicialmente no depósito da Praia Grande (hoje, Niterói). Enquanto aguardavam a definição de sua condição, dormiam e comiam ao lado dos mantimentos que haviam trazido nas embarcações. Com o passar dos meses, foram aos poucos enviados para quartéis militares – também impróprios para receber tão avultado número de pessoas, pois “eles eram enfiados em alojamentos fechados, imundos, sem uma preparação mínima para qualquer conforto ou necessidades. Eles não tinham camas para dormir, nem mesmo uma esteira para evitar o contato com o chão”, como observou o irlandês Robert Walsh (1772-1852), capelão da embaixada britânica na cidade.
Naquela época havia uma recusa generalizada por parte dos homens em se inserirem nas forças armadas, alegando que não tinham se comprometido com tal exigência. Muitos procuraram outros meios de sobrevivência pela cidade, e logo vários irlandeses estavam esmolando nas ruas. Outros se embriagavam e se metiam em diversas confusões e conflitos com moradores e escravos. Em pouco tempo os recém-imigrados receberam dos negros nas ruas o apelido de “escravos brancos”. O periódico O Espelho Diamantino afirmava que os irlandeses “padecem de enfermidades da bebedice e desgraçadamente caem, e adormecem nas ruas públicas, merecendo bem pouca atenção do povo que passa”.
No início de 1828, o governo continuava tentando fazer com que o maior número possível de homens aceitasse jurar bandeira no Exército. Os irlandeses ainda estavam instalados em condições precárias, talvez uma estratégia para forçá-los a assentar praça. Em março, enfim, conseguiram o apoio do embaixador inglês no Rio de Janeiro, Sir Robert Gordon, que exigiu que o governo cumprisse o combinado, caso contrário ficaria caracterizado o descumprimento das leis do Reino Unido que restringiam a arregimentação militar. A pressão surtiu efeito: o governo brasileiro passou a conceder o soldo de um shilling e ração dobrada, e suspendeu castigos corporais. Mas a maior parte dos imigrantes persistiu em sua convicção de não se alistar. Nesse mesmo mês, 270 colonos que se encontravam nos quartéis da Praia Vermelha – os que ficaram inicialmente na Praia Grande e outros irlandeses que estavam em diferentes localidades – foram enviados para a Bahia a bordo do brigue Victoria para formarem uma colônia de povoamento no interior da província, na cidade de Taperoa.
Os que ficaram continuaram insatisfeitos. No decorrer do primeiro semestre, os irlandeses se organizaram para exigir e reivindicar seus direitos. Entre os já alistados, as atitudes de constante questionamento representavam uma grave quebra na hierarquia militar, e eles eram descritos nos documentos oficiais como turbulentos, agitadores e violentos. Os alojados no quartel da Rua dos Barbonos, no Centro, manifestavam-se desde o começo dos eventos, denunciando terem sido enganados e pedindo ao governo brasileiro que os reconduzisse à Irlanda. Um grande conflito explodiu nesse quartel e perdurou por dois dias, levando à perda de várias vidas. Os depoimentos dos envolvidos na revolta trazem à tona seu possível líder: um dos acusados dizia que “foi camarada do padre O’Grade”, outro era “tido como emissário do padre O’Grade”, e assim por diante. William John O’Grady havia sido o capelão dos colonos desde sua partida na Irlanda até abril de 1828, quando foi destituído do cargo pelo governo brasileiro, pois era evidente sua participação na resistência.
Sua forte oposição ao sistema e às condições de recrutamento acabou fomentando a explosão de uma crise maior, envolvendo as tropas estrangeiras. Em junho daquele ano, os irlandeses apoiaram alemães numa violenta rebelião no Rio de Janeiro, em protesto contra as péssimas condições pelas quais passavam os soldados germânicos em contraste com as recentes conquistas dos irlandeses. Durante os dias 9 e 10 do mesmo mês, os alemães concentraram sua violência contra oficiais superiores, que tinham por costume exagerar nas punições físicas e eram acusados de desonestidade. No dia 11, a situação se agravou: irlandeses acirraram o conflito e passaram a saquear casas e a atacar negros nas ruas. Em resposta, escravos foram armados e autorizados a matar qualquer estrangeiro. O conflito tomou as ruas próximas ao Campo de Santana, espalhando-se pelo centro da cidade. Depois de horas de descontrole, a violência foi contida com o uso de infantaria, cavalaria e soldados da polícia. Somente na manhã do dia 12, depois de muita negociação, os alemães e os irlandeses restantes foram aos poucos se rendendo.
Apesar de toda a pressão, menos de um quarto dos irlandeses que chegaram ao Brasil aceitou o serviço militar. Para além de agitar o cotidiano da cidade, a revolta das tropas estrangeiras abalou as autoridades militares e a própria figura do imperador D. Pedro I, que já vinha desgastada pela Guerra da Cisplatina e pela perda da província da Cisplatina. Enganados e recrutados para uma guerra que não concordaram em combater, os irlandeses deram o troco.
“Os que não aprendem com a História, vão repetir sempre os mesmos erros”.
*Autor da dissertação “Imigrantes irlandeses no Rio de Janeiro: Cotidiano e revolta no primeiro reinado”(USP, 2010).
Bibliografia
BASTO, Fernando L. B. Ex-combatentes irlandeses em Taperoá. Petrópolis: Vozes, 1971.
MESQUITA, Regina Márcia Bordallo de. A Revolta dos Batalhões de Estrangeiros. Dissertação de mestrado, UFF, 2003.
Revista de HISTÓRIA/montedo.com
Revista de HISTÓRIA/montedo.com