7 de julho de 2012

Marlene Dietrich e o soldado desconhecido

David Furtado
Durante a II Guerra Mundial, Marie Magdelene Dietrich von Losch, costumava fazer espetáculos para as tropas americanas que combatiam na Europa. Tratava-se de atuações da USO (United Service Organizations Inc.), cujo objetivo era dar moral às tropas. Quase no final da guerra, numa noite fria e chuvosa, Dietrich compareceu em Friesheim, uma das povoações conquistadas aos alemães. Um dos soldados da unidade que ficaria famosa como The Big Red One, Samuel Fuller, descreve o que sucedeu nessa noite e o reencontro com a atriz, anos depois.
Marlene Dietrich
Ao fim de quase quatro anos de combate em vários locais da Europa, a unidade de Fuller estava com pior aspeto do que o das tropas nazis que capturava. Totalmente esgotados, dispunham de poucos minutos para repousar, a fadiga e o “pé-de-trincheira” afligiam todos os homens. Quando foram convidados para o espetáculo da USO, pareceu-lhes um milagre. “Os camiões arrastavam-se pela lama para nos levarem ao pequeno teatro da povoação”, conta Fuller.
“Os soldados de infantaria, ensopados e exaustos, esqueceram logo o tempo e o cansaço, já que a apresentadora dessa noite era a única e insubstituível Marlene Dietrich, uma mulher que representava todas as mulheres, para nós.”
O impacto da presença de Dietrich nos soldados foi enorme: “Ela entrou em palco, naquele teatro completamente cheio, com um vestido vermelho flamejante que envolvia o seu corpo curvilíneo como uma segunda pele. Não se via nem um milímetro daquelas famosas pernas, mas sabíamos que elas estavam lá.”

Marlene Dietrich e os soldados Aliados na Alemanha, em fevereiro de 1945, num dos espetáculos da USO.
Dietrich contou aos soldados que nascera alemã, mas que agora era americana. Tendo emigrado para os EUA depois de denunciar os nazis, naturalizara-se norte-americana em 1939. Explicou que só regressava à Alemanha para dar moral às tropas. “Só o facto de vermos aquela mulher deslumbrante nos fez sentir melhor”, recorda Sam Fuller. “Aplaudimo-la entusiasticamente.”
Durante 1944 e 1945, Dietrich fez digressões longas por detrás das linhas Aliadas, dando centenas de espetáculos para soldados que a adoravam. Um trabalho frio, perigoso e com poucas recompensas, mas a atriz parecia adorar todas as suas facetas.
Dietrich disse aos soldados para descontraírem e pousarem as suas “peças”. Era assim que os militares se referiam às suas M1, pelo que adoraram esse pormenor. Gerou-se um grande ruído metálico, enquanto os soldados as pousavam. Depois de os observar com “aquele sorriso indomável”, disse-lhes que queria ouvir todas as armas no chão.
“Ela sabia que era difícil separarmo-nos das nossas M1, e que muitos tipos estavam sempre agarrados a elas, independentemente do lugar onde estivessem. Tinham-se tornado parte do nosso corpo, uma espécie de terceiro braço.” Contudo, Dietrich foi paciente e obedeceram-lhe. Não fez muito mais do que cantar duas canções e apresentar os restantes artistas da USO. “Ela não tinha de fazer nada. Afinal, ela era Dietrich”, comenta Fuller.

Alemanha, fevereiro de 1945.
“CHARUTOS”
Quando o espetáculo terminou, os soldados aplaudiram com ardor e regressaram aos camiões que os transportariam de novo para a frente de combate. O cabo Fuller perguntou ao condutor quando tempo demoraria a reunir toda a tropa e a dar meia volta no terreno enlameado. “Cerca de 20 minutos”, foi a resposta. Fuller correu então para a porta que dava acesso ao palco, mas um elemento da Polícia Militar (MP) impediu-lhe a entrada nos bastidores. O soldado disse-lhe que tinha de falar com Miss Dietrich acerca de um “assunto profissional”. “Esquece”, rosnou o MP, “volta para a tua unidade”.
“Ele não se livraria de mim tão facilmente”, declara Fuller. “Comecei a gritar ao filho da mãe que era um assunto profissional. O MP cedeu, deu meia volta e dirigiu-se ao camarim de Dietrich. Tal como nos meus tempos de repórter, em que procurava uma fonte relutante para uma história, segui-o de perto. O MP bateu à porta do camarim, abriu-a o suficiente para ser ouvido e começou a falar com Dietrich. Eu apressei-me a enfiar a cabeça na frincha da porta.”
– É só um minuto, Miss Dietrich.
A atriz, surpreendida mas cordial, convidou-o a entrar no seu camarim, húmido e frio. “Tinha um belíssimo aspeto, mas tremia. A única luz provinha de uma lâmpada que baloiçava no teto alto. Pedi desculpa pela minha aparência. Estava com um ar terrível, por barbear; o meu uniforme estava todo porco, tinha as botas cheias de lama e também devia cheirar mal. Mas Dietrich pareceu não se importar nada. Provavelmente, vira pior durante a sua digressão entre as tropas na frente”, descreve Samuel Fuller.
– Miss Dietrich, gostava que entregasse uma mensagem minha, em casa.
– Impossível – disse ela –, é mesmo impossível.
A atriz explicou-lhe que conhecera muitos soldados que queriam que ela telefonasse às suas mães e namoradas. Mas simplesmente não o podia fazer, e respondia o mesmo a todos. O soldado esclareceu que não era isso que pretendia. A sua intenção era que dissesse uma palavra a Charlie Feldman, em Hollywood.
– Charles K. Feldman? – exclamou Marlene, subitamente intrigada. – O meu agente? Conhece-o?
– Sim, Miss Dietrich. Ele também é o meu agente.
A atriz ficou estupefacta.
– Também é o seu agente?
– Sim, é. Vendeu o meu livro a Howard Hawks, um romance chamado The Dark Page. A mensagem para Charlie é fácil, Miss Dietrich. Só uma palavra. ‘Charutos’. Diga apenas, ‘charutos’ a Charlie quando regressar a Hollywood, ok?
A atriz riu-se e serviu dois copos de brandy de qualidade.
– Como se chama, soldado?
– Fuller. Sammy Fuller.
Marlene pediu-lhe que escrevesse o nome, mas o homem que abandonara a escrita de guiões em Hollywood para se alistar no exército, e que já publicara romances, além de ser um ávido fumador de charutos, recusou.
– O meu nome não é necessário. Diga apenas, ‘charutos’ a Charlie, ele saberá quem é.
– Está bem, soldado – respondeu Dietrich, batendo com o seu copo no dele. – Posso fazer mais alguma coisa por si?
– Sim. Os meus camaradas nunca acreditarão que falei consigo.

Fuller pediu-lhe que escrevesse umas notas personalizadas em pedaços de papel, coisas como “podes viver com apenas um testículo!”, e a atriz riu-se enquanto o soldado lhas ditava. Assinou “Marlene” em todas. “Bebemos a Charlie Feldman, à Big Red One e aos Aliados.”
Esta cena, no camarim da mítica Marlene, ficou para sempre gravada na memória de Fuller. Ela disse-lhe para levar a garrafa. Ele deu-lhe um beijo e apressou-se a sair, juntando-se à sua unidade, quando esta estava prestes a partir. Os companheiros perguntaram-lhe onde arranjara o brandy. “Dietrich”, disse o soldado.
“Riram-se à brava, tal como eu. Foi um dos momentos de puro divertimento que vivíamos desde há muito. O meu sargento, que raramente sorria, também se riu discretamente. Dei ao sargento a nota personalizada de Dietrich. A chuva quase esborratara as palavras escritas a lápis, em que ela dizia esperar usar apenas um capacete e um cinturão para ele, um dia. O sargento murmurou algo ininteligível, e então sorriu a sério.”
Marlene Dietrich confraternizando com os soldados que a adoravam.
Fuller passou então todas as notas de Dietrich aos camaradas. Espantados e em silêncio, os colegas leram “aqueles preciosos pedaços de papel”. Depois bombardearam-no com perguntas sobre “a grande dama”. Fuller ficou com um sorriso de orelha a orelha, mas nada disse, acendendo um resto de um charuto húmido. “Olhei para Friesheim, que mergulhava na escuridão, o fumo do meu agradável charuto saía do camião que desbravava a noite alemã.”
Uma caixa de bons charutos chegou pelo serviço postal do exército, nessa primavera, remetida por Charlie Feldman. “Dietrich entregara mesmo a minha mensagem.”

REENCONTRO
Quando Sam Fuller regressou aos EUA, era um homem mudado. A experiência da guerra atormentá-lo-ia para sempre. No entanto, de argumentista passou a realizador, concebendo vários filmes de guerra diferentes de todos os outros, como comentaria Martin Scorsese: “Só podiam ter sido realizados por alguém que esteve lá e viveu aquilo.”

Sam Fuller.
Em 1953, oito anos depois, o realizador reencontrou Marlene Dietrich em circunstâncias bastantes diferentes, no clube noturno nova-iorquino El Morocco, durante uma festa após a estreia da sua obra mais recente, Pickup on South Street (Mãos Perigosas). Na mesa de Fuller, estava a atriz Thelma Ritter, que seria nomeada para um Óscar pelo seu papel no filme. Noutra mesa, no extremo oposto da grande sala, sentava-se o lendário produtor Sam Spiegel. “Ele acenou-me, pelo que fui lá cumprimentá-lo”, recorda Fuller. “Ao lado de Spiegel, estava Dietrich. Ele apresentou-nos, e eu disse que já nos tínhamos encontrado. Ela foi muito educada, mas abanou a cabeça, sem se recordar do local ou da altura em que nos conhecêramos. ‘É uma pena’, disse eu. ‘É assim a vida’.”
O realizador deu meia volta e regressava à sua mesa, quando, de súbito, se apercebeu que Marlene estava mesmo atrás de si.
– Hei, soldado – disse ela, com um brilho no olhar.
Fuller voltou-se e sorriu. Ela abraçou-o, com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. “Ouvira muitas histórias sobre os homens mortos na nossa unidade. Mas, apesar disso, ali estava eu, vivo. Ficou genuinamente agradada por me rever. Foi uma reunião calorosa. Ela atuara em 500 espetáculos para as tropas durante a guerra, mas só houve um pequeno cabo que tentara ‘extorquir’ uns charutos a Charlie Feldman em Hollywood.”
– A Big Red One! – exclamou a atriz, com a voz emocionada.
Wand' Rin' Star/montedo.com

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