Cerca de cem guerrilheiros teriam lutado contra o regime militar na região do Araguaia (Reprodução) |
Treinamento militar de militantes do PCdoB começou em 1963. Estima-se que entre 20 e 30 militantes que formariam a espinha dorsal da guerrilha tenham viajado àquele país
Vasconcelo Quadros - iG São Paulo
A Guerrilha do Araguaia, o mais consistente movimento armado organizado pela esquerda para enfrentar a ditadura, é ainda uma ferida aberta, encoberta por um misterioso silêncio envolvendo seus principais atores.
Seu principal protagonista, o PCdoB, que começou bem antes do golpe os preparativos da guerrilha, nunca veio a público para assumir plenamente os equívocos, dizer o que pretendia e nem para explicar que também tinha apoio de uma potência internacional, a China.
Depois de mais de quatro décadas, as Forças Armadas ainda se mantêm mudas e resistem a reconhecer que torturaram, mataram prisioneiros indefesos e sumiram com corpos numa guerra marcada pela desigualdade bélica e humana.
Cerca de cem guerrilheiros teriam lutado contra o regime militar na região do Araguaia
“O PC da China facilitou o treinamento militar de uns dois ou três grupos de militantes”, diz o engenheiro Wladimir Pomar, ex-membro do Comitê Central do PCdoB, hoje filiado ao PT. Wladimir refuta a tese militar segundo a qual, caso a guerrilha não tivesse sido eliminada, a potência asiática fincaria um pé na Amazônia brasileira.
“Se a guerrilha vencesse, o único benefício da China seria contar com mais um aliado no contexto internacional”, afirma Pomar.
O apoio da China a guerrilha é um tema controverso, do qual o PC do B sempre se desviou. Mas, embora não se saiba exatamente quais foram seus termos, o acordo foi tão importante que em dezembro de 1976, o então presidente do Comitê Central, João Amazonas, acompanhado do hoje presidente do partido, Renato Rabelo, foram a Pequim informar a direção do PC Chinês sobre a derrota da guerrilha.
O encontro na China se deu no mesmo período em que ocorreu a Chacina da Lapa, a ação policial em São Paulo que matou dois importantes dirigentes, Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, o comandante da Guerrilha do Araguaia que havia escapado ao cerco militar um ano antes. Um terceiro integrante, João Batista Drumond, morreria na prisão e vários outros, entre eles Wladimir Pomar, seriam presos.
A chacina interrompeu a análise que os comunistas faziam sobre o caso Araguaia e foi como uma pá de cal na resistência armada. Em 1979, logo depois da Anistia, uma nova tentativa de forçar a autocrítica acabou em nova cisão. O grupo que discordava da posição oficial se dividiu, formando um novo partido, o PCR, ou migrando para o PT.
Antes do golpe de 64
A mentira: luta por liberdade e democracia (Reprodução Fundaçao Grabois) |
O treinamento militar de militantes do PC do B na China começou em 1963, um ano antes do golpe. Estima-se que entre 20 e 30 militantes que formariam a espinha dorsal da guerrilha tenham viajado àquele país. O tempo de permanência de cada grupo girou em torno de um ano, período em que os comunistas brasileiros estudaram a revolução chinesa, suas táticas de guerra prolongada e se preparam militarmente. Vem daí denominação de revolução maoísta, inspirada na Grande Marcha que levou Mao Tsé-Tung ao poder.
Dois militantes que seriam presos em 1966 ao desembarcar no Brasil, James Allen Luz e Tarzan de Castro, detalhariam em depoimento à polícia tudo o que aprenderam. Além do manuseio de armas, preparação de artefatos, domínio do terreno e demais ações de guerra de guerrilha, há duas lições curiosas, que seriam anotadas no diário do então Comandante Militar do Planalto, general Antônio Bandeira: as “penicadas” e os cartazes dupla face.
A primeira eram picadas abertas na mata virgem, que ligava nada a lugar algum, mas confundiam e assustavam os militares, cientes de que a guerrilha, pelo menos no início, tinha o controle do espaço; já os cartazes com propaganda da guerrilha eram como peças publicitárias da guerrilha. Deveriam ser pregados em árvores. Na frente, tinha a propaganda contra a ditadura e, no verso, embutido num buraco a ser aberto no tronco, artefato que explodiria quando o cartaz fosse arrancado. As aulas de história e de táticas de guerrilha eram ministradas na Escola Militar de Nanquim.
Território livre do Araguaia
Reprodução |
O PCdoB chegou ao Araguaia em 1966 com a presença de um de seus mais importantes militantes, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um carismático negro de quase dois metros, ex-boxeador, ex-oficial do Exército no Rio e engenheiro de mina, com passagem pela China. Os outros militantes chegariam aos poucos, até 1972, e dezenas deles seriam presos nas cercanias do Araguaia ou nas cidades.
Osvaldão foi caçador de peles (mariscador, na linguagem dos camponeses) e dono de garimpo, detalhe que chamaria a atenção dos militares e levantaria suspeitas de que o PCdoB também teria optado por se instalar no Araguaia por sua proximidade com as ricas jazidas de ouro e manganês da Serra dos Carajás, dominada pela Vale.
Com três destacamentos, o A, o B, e o C, instalados numa superfície de aproximadamente sete mil quilômetros quadrados, o PC do B tinha um objetivo claro: criar uma zona liberada ou um território livre e, do campo, liderar uma reação armada que derrubasse a ditadura. A estratégia era de longo prazo, mas acabou sendo abortada.
Nos seis anos de preparativos no Araguaia, o PCdoB criou laços efetivos com a população camponesa, que só soube da estratégia revolucionária quando o conflito estourou. O partido acreditava que os demais grupos que também tentavam se organizar no campo e as massas sindicais nas cidades fortaleceriam a guerrilha.
Em 12 de abril de 1972, quando os militares atacaram, os comunistas tinham conseguido formar um contingente de menos de 70 militantes, a maioria estudantes recrutados nas cidades. O apoio da China e a solidariedade política do Partido do Trabalho da Albânia (PTA) _ com quem o PCdoB também tinha relações _ se tornariam inócuos logo depois dos primeiros combates, ao longo de 1972.
No ano seguinte, depois de uma operação de infiltração conhecida como Sucuri, a guerrilha foi asfixiada, os laços do Araguaia com as cidades foram cortados e os militares dariam curso a caçada e extermínio, encerrados no final de 1974. Pelas estimativas dos militantes, embora tivessem pleno conhecimento do terreno, a guerrilha deveria ser deflagrada dois ou três anos depois. Pega de surpresa, em vez de optar pela defensiva, resolveu medir forças em condições claramente desiguais. Nem plano de recuo havia.
“O confronto se mostrou equivocado. Não era o momento. Não me arrependo, mas não faria isso de novo”, diz o ex-guerrilheiro Dagoberto Alves Costa, para quem o prometido apoio da China, segredo de polichinelo entre os militares, nunca foi visto na prática.
“Nos iludimos acreditando num projeto frágil”, diz ele. Segundo Dagoberto, embora os militantes soubessem que havia apoio externo, os detalhes só eram do conhecimento da direção do partido e só apareceriam se a guerrilha se enraizasse. “A ideia seguia a linha do PC Chinês, de guerra popular revolucionária prolongada, mas o PCdoB não se deu conta que as coisas haviam mudado depois da Segunda Guerra”, diz o ex-guerrilheiro.
Entre o final de 1974 e início de 1975, Ângelo Arroyo, o último comandante, só conseguiu deixar a área com a ajuda do único integrante do grupo de origem camponesa com experiência em movimentação na mata. Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia, o retirou da mata e seguiu com ele até São Paulo, onde se despediram para sempre. Arroyo foi morto em 1976 e Zezinho, empregado na construção civil, trocou de nome, perdeu contato com os comunistas e só reapareceria 20 anos depois, quando todos imaginavam que estava morto.
iG/montedo.com