Nota do editor:
Publico, em sequência, dois artigos do jornalista Rodrigo Constantino. Merecem uma leitura atenta, pois ajudam a esclarecer em muito essa 'salada ideológica' que nos é servida diariamente.
A esquerda adora uma direita caricata. Ou: Debatendo com um espantalho
Rodrigo Constantino
Alguns pensam que direita e esquerda são conceitos ultrapassados. Normalmente, são de esquerda. Não creio que tais conceitos estejam obsoletos. Apenas acho que merecem qualificação e mais cuidado, pois rótulos, se servem para simplificar nossa compreensão, também podem servir para confundir.
No Brasil, a situação é ainda pior. O que é ser de direita aqui? Defender o regime militar? Os coronéis nordestinos? Os evangélicos fanáticos? Detestar pobres? Aparentemente, essa é a visão de muita gente de esquerda. Assim é fácil derrotar o adversário, não é mesmo?
O que essa turma gosta de fazer é monopolizar as virtudes. Ser “progressista” é ser modernos, a favor do avanço, enquanto ser conservador é ser reacionário. Ser de esquerda é estar do lado dos pobres, enquanto ser de direita é ficar ao lado dos ricos e poderosos. Não se debate meios, mas fins. Só a esquerda é sensível, ungida, iluminada, moderna. Nada mais falso!
Se direita é ditadura militar, pastores evangélicos ou fazendeiros machistas do interior, então não sou de direita. Só que isso não é direita. É um espantalho criado pela esquerda, para não ter que debater com a verdadeira direita.
Que tal falarmos, por exemplo, de toda a linha do pensamento conservador da Inglaterra e da Escócia? Que tal debatermos com filósofos como Roger Scruton? Ou com historiadores como Paul Johnson? Ou com historiadores econômicos como Niall Ferguson? Enfim, há várias alternativas, totalmente fora da caricatura criada pela esquerda brasileira.
Que tal resgatarmos o legado de Ronald Reagan e Margaret Thatcher? No caso brasileiro, que tal falarmos de Joaquim Nabuco ou José Bonifácio? Mais recentes? Que tal debatermos as ideias de Roberto Campos? Há alguma semelhança com essa imagem da direita pintada por seus detratores?
E então? Vamos deixar o pastor Feliciano um pouco de lado, o Bolsonaro lá no seu canto atendendo seu nicho político, e vamos debater de verdade com a direita[...]?
Os “progressistas” adoram o progresso, mas suas ideias, que têm mais de um século e cheiram a naftalina, só trazem atraso, retrocesso. São tão avançadinhos no âmbito cultural que desejam para a humanidade a volta dos tempos em que o homem era mais animal instintivo e menos humano. São “humanistas” que adoram ditaduras assassinas. Vamos falar dos fatos?
A esquerda defende as cotas raciais e as esmolas estatais para os pobres. Isso é o mesmo que defender os negros e os pobres? Só na cabeça oca da esquerda! Isso é fomentar a segregação e o privilégio, e criar dependência sem porta de saída, voto de cabresto. Quem defende o coronelismo nordestino mesmo?
Adriano Codato, pesquisador da UFPR, um dos tantos que vendem essa caricatura da direita, defende o Bolsa Família: “Essas pessoas (eleitores pobres) são governistas, não são petistas. Elas votam de forma pragmática e racional. Se há alguém que sabe votar neste país é o pobre”. Sério?
A direita, ao contrário da esquerda, não precisa glamourizar a pobreza; quer reduzi-la. Como pode votar melhor e com mais razão quem tem menos instrução e depende de esmolas estatais? À medida que o grau de escolarização e renda aumenta, a tendência é o populista PT perder votos. O pesquisador acha que isso é votar mal…
Na verdade, a esquerda adora a retórica bonita, o discurso inflamado, o monopólio dos fins nobres. Mas não liga para os resultados concretos de suas ideias, sempre opostos ao pregado. Não adora os pobres; adora a pobreza que permite a aura de defensora dos fracos e oprimidos que ostenta. Imagem é tudo.
A esquerda ama a Humanidade. Só não suporta muito o próximo, de carne e osso, diferente. Para manter as aparências, precisa detonar uma direita mitológica, fictícia, inventada pela gauche, um espantalho criado para ser destruído em praça pública e evitar o verdadeiro debate de ideias.
E então? Vamos deixar o pastor Feliciano um pouco de lado, o Bolsonaro lá no seu canto atendendo seu nicho político, e vamos debater de verdade com a direita, aquela que defende os valores morais mais sólidos, o ceticismo em relação a toda forma de utopia política, e um estado com escopo limitado justamente para não prejudicar os mais pobres?
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Esquerda, direita e espantalhos
Meu artigo sobre a caricatura que a esquerda faz da direita recebeu uma crítica legítima: também fiz uma caricatura da esquerda. Confesso. Mea culpa. Mas há um motivo para isso: a esquerda que retratei de forma caricatural, aquela que “ama a Humanidade”, mas adora ditadores assassinos, não só é bem vasta e representada politicamente no Brasil (PT, PSTU, PSOL), como está no poder!
Há vida inteligente na esquerda? Em minha opinião, sim. Respeito vários quadros do PSDB, por exemplo, que é claramente um partido de centro-esquerda. Mas aqui começam os problemas: o Brasil está tão atrasado no debate político, e essa esquerda jurássica e caricata que apontei está há tanto tempo disseminando mentiras, que o PSDB passou a ser visto como direita!
Portanto, quando falo de uma esquerda hipócrita e autoritária, que se diz “progressista”, monopoliza os fins nobres, e bajula ditadores enquanto isso, estou falando da esquerda mainstream, da esquerda que está no governo, que controla as universidades, parte da imprensa, parte da igreja. A caricatura não é injusta, ou seja, nem é bem uma caricatura. A realidade dela é que parece caricatural, de tão reacionária e retrógrada que é (como pode alguém ainda defender o regime cubano em pleno século 21?).
Alguém que diz que FHC devia ser “fuzilado” por ter privatizado a Vale não pode merecer muito respeito, ainda que seja um aliado temporário contra o inimigo principal, que está no poder.
Dito isso, a direita que a esquerda pinta como fanática e reacionária existe, sem dúvida. Mas está longe de ser a maioria ou algo perto disso, como a esquerda dá a entender. Essa, sim, é uma imagem caricatural. Pegam uma minoria mais barulhenta, saudosista do regime militar (não confundir com o contragolpe de 1964 e o governo Castello Branco), ou que abraça um fanatismo religioso incompatível com a liberdade individual (não confundir com a religião em si), e transformam isso em toda a direita. Espantalho puro, como mostrei.
Alguns leitores não gostaram de eu ter colocado Bolsonaro na lista das caricaturas que a esquerda usa contra a direita. Reconheço que o deputado tem coragem de combater os comunistas, a corja dos petralhas, mas isso não faz dele uma direita razoável. Ser antipetista é condição necessária, mas não suficiente para ser louvável.
Alguém que diz que FHC devia ser “fuzilado” por ter privatizado a Vale não pode merecer muito respeito, ainda que seja um aliado temporário contra o inimigo principal, que está no poder. É preciso saber separar as coisas. Alianças e concessões pragmáticas devem ser feitas em nome de uma causa maior, que no momento é tirar o PT do poder. Mas isso não quer dizer que seja vantajoso ou desejável, para a direita liberal, ou conservadora de “boa estirpe”, como costumo dizer, associar-se a figuras assim.
Não custa lembrar que Leandro Narloch, em pesquisa para seu novo livro, entrevistou políticos brasileiros com perguntas baseadas em Mussolini, sem que soubessem, e Bolsonaro foi o campeão de respostas afirmativas, endossando o credo fascista. Ficou bem perto da turma do PCdoB, autoritária ao extremo.
O pastor Marco Feliciano tampouco deve ser considerado um representante da direita que presta. Não só votou e foi aliado do PT até ontem, como não dá para levar muito a sério sua postura. Uma coisa é defendê-lo dos ataques coordenados e pérfidos da esquerda e do movimento gay, autoritário e intolerante; outra, bem diferente, é colocá-lo como ícone da direita liberal ou conservadora.
Para liberais como eu, não há problema em se colocar na direita, desde que esta seja qualificada. Talvez a melhor distinção seja foco individual versus coletivismo. Pois não resta dúvida de que existe uma direita autoritária e coletivista, e dessa os liberais devem manter distância, ainda que possam fazer vista grossa no curto prazo de olho no inimigo comum (Churchill lutou ao lado até de Stalin quando era para derrotar Hitler).
O viés nacionalista (não confundir com patriotismo saudável) é outro elo que freqüentemente liga alguns conservadores ao coletivismo. Pensar em termos de “nossa” indústria ou “nosso” recurso natural é um pequeno passo de distância para começar a demandar que tais ativos nacionais sejam direcionados para o “interesse nacional”. Protecionismo, reservas de mercado, subsídios agrícolas, são algumas das medidas que podem colocar conservadores lado a lado com socialistas, ambos contra os liberais.
Enfim, o debate político-ideológico no Brasil ainda precisa melhorar muito. Alguns extremos devem ser podados para não contaminarem a coisa toda. Reacionários e autoritários existem tanto na esquerda como na direita. Ao mesmo tempo, há uma (pequena) parte da esquerda que merece respeito, que é a social-democracia moderna. Discordo dela, claro, mas respeito o debate.
Infelizmente, ela é vista como direita no Brasil, e a direita liberal ou conservadora, que nem tem organização político-partidária, é vista como “ultraliberal” ou “reacionária”, sendo que figuras caricatas de uma direita realmente obsoleta servem de ícones para toda a direita, uma tática deliberada da esquerda para refutar um espantalho e fugir do debate verdadeiro.
Como o país seria melhor se socialistas, fanáticos religiosos e anarquistas fossem ignorados, e o debate ficasse concentrado entre social-democratas, liberais e conservadores de boa estirpe. Um sonho! Será que chegaremos lá um dia?
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