Comissão Nacional da Verdade parte para a ofensiva contra as Forças Armadas
Ela reafirmou a disposição do grupo de propor aos três poderes a revisão da Lei da Anistia
Estadão Conteúdo
Depois de um ano, a Comissão Nacional da Verdade partiu para a ofensiva contra as Forças Armadas. O grupo instalado para investigar crimes da ditadura acusou a Marinha de mentir sobre o destino de perseguidos políticos e sonegar 12 mil páginas de documentos em pleno regime democrático.
Um estudo apresentado nesta terça-feira revela que o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) relatou ao governo Itamar Franco, em 1993, em plena democracia, que guerrilheiros mortos no Araguaia e nas cidades ainda estavam foragidos. A advogada Rosa Cardoso, que assumiu a coordenação da comissão, disse que pode entrar na Justiça com mandado de segurança para abrir os arquivos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
“Nós cogitamos de todos os meios legais para ter acesso às informações”, afirmou. “Tecnicamente, o que a Marinha teria feito foi uma falsidade ideológica.” É a primeira vez que os membros da comissão demonstram, em público, falta de paciência com o tratamento dado pelos comandantes militares. “Temos por lei, obrigação de trazer informes complementares sobre os mortos e desaparecidos”, disse Paulo Sérgio Pinheiro, outro integrante do grupo. O alvo de ontem foi a Marinha.
“O Cenimar é [foi] um dos mais ferozes centros da repressão da ditadura”, disse a pesquisadora Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais que presta consultoria à comissão. “Na Marinha, o culto ao segredo é levado às ultimas consequências.” Ela apresentou documento em que a Marinha, comandada na época pelo almirante Ivan Serpa, morto em 2011, informou ao ministro da Justiça, Maurício Corrêa, que 11 perseguidos dados pelos órgãos oficiais como mortos estavam “foragidos”.
Ao mesmo tempo, a força teria sonegado documentos sobre os perseguidos políticos. O estudo cita os guerrilheiros mortos no Araguaia Antonio Carlos Monteiro Teixeira, Ciro Flávio Salazar de Oliveira, Helenira Rezende e Kleber Lemos da Silva e mortos pela repressão nas cidades, como Antonio dos Três Reis de Oliveira, Ezequias Bezerra da Rocha, Felix Martins Escobar, Isis Dias de Oliveira, Joel Vasconcelos Santos, José Gomes Teixeira e Rubens Paiva.
Ao longo do tempo, uma série de reportagens na imprensa derrubou a versão militar de que os arquivos da ditadura foram destruídos. Em 2008, o jornal O Estado de S. Paulo divulgou que o Exército mantém em seus arquivos informações sobre combates a guerrilheiros no Araguaia. À época, o jornal noticiou que um processo administrativo, aberto a pedido de um militar da reserva interessado em ganhar uma promoção, apresentou dados de operações contra a guerrilha no Sul do Pará.
Ao comentar o estudo, Rosa Cardoso centrou as críticas nas Forças Armadas, esquivando-se de falar sobre a posição do Planalto. A uma pergunta se a presidente Dilma Rousseff recebeu o estudo e poderia interceder para o êxito das investigações do grupo nos arquivos militares, ela disse que não poderia falar de “desdobramentos” dos trabalhos da comissão. “Essas perguntas são perguntas retóricas que não devem ser respondidas”, afirmou. Rosa, porém, disse que a comissão vai entrar em ritmo de “campanha” a partir de agora para avançar nas apurações.
Ela reafirmou a disposição do grupo de propor aos três poderes a revisão da Lei da Anistia, de 1979, que perdoou crimes cometidos por agentes do regime militar. Rosa avalia que militares envolvidos em crimes de lesa humanidade devem ser punidos.
No começo da noite, a assessoria de imprensa da Marinha divulgou nota para negar que mantém arquivos da ditadura. “A Marinha do Brasil esclarece que todos os registros existentes nos arquivos da instituição, solicitados pelo Ministério da Justiça, em 1993, foram encaminhados àquele órgão”, destaca a nota. “Não há qualquer outro registro nos arquivos desta força, diferentes daqueles encaminhados ao MJ”, ressalta. “Dentre os valores e preceitos éticos cultuados pela Marinha do Brasil, destaca-se o rigoroso cumprimento das leis e dos regulamentos. Nesse contexto, a Marinha continuará contribuindo para a consecução das tarefas desempenhadas pela Comissão Nacional da Verdade, colocando-se à inteira disposição para o atendimento de qualquer demanda que esteja ao seu alcance”, completa.
O que a nota não informa é que o relatório sobre mortos no Araguaia, repassado naquele ano pela Marinha ao Ministério da Justiça, foi elaborado a partir de depoimentos de presos que nunca foram divulgados em sua íntegra.
Correio da Bahia/montedo.com