Minustah - 10 anos
Em entrevista a CartaCapital, cônsul brasileiro fala em despreparo das instituições haitianas e afirma que a simpatia dos haitianos pelo Brasil cresceu com a missão
Para Vitor Hugo Irigaray, que serve como diplomata no Haiti pela segunda vez, procura por vistos é consequência da Minustah (Marsiléa Gombata) |
Marsílea Gombata
Porto Príncipe - Todas as tardes, quando deixa o edifício Hexagone para ir para casa, Vitor Hugo Irigaray é cercado por uma multidão. São dezenas de haitianos que imploram um visto para o Brasil ou qualquer ajuda que os levem a conseguir entrar no País legalmente. “É estressante demais porque eu já não tenho mais vida pessoal. Em todo lugar que vou, minha casa, igreja ou mercado, eles pedem alguma coisa”, conta o cônsul brasileiro. Cansados da falta de perspectiva em sua terra natal, os haitianos buscam oportunidades de emprego em terras estrangeiras. Se antes tentavam deixar o Haiti rumo aos Estados Unidos ou mesmo ao Canadá, hoje veem no Brasil um novo destino.
Desde que assumiu o posto em Porto Príncipe, Irigaray concedeu 9.962 mil vistos. O número, atingido em dois anos e meio, é uma pequena parcela dos mais de 1.500 pedidos diários. “Essa imigração, esse incentivo à imigração, começou com a ocupação das tropas brasileiras aqui”, avalia em entrevista a CartaCapital, em seu escritório na capital haitiana. “Já havia um namorico com o Brasil anteriormente, e esse namorico passou a ser um noivado. Hoje concretizamos esse noivado em um grande casamento”.
Para o diplomata, que já trabalhou em El Salvador, Guatemala, Nicarágua e Jordânia, o Haiti não tem condições de dizer adeus à Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) tão cedo. Segundo ele, as tropas estrangeiras só podem deixar o país quando este conseguir caminhar com as próprias pernas, ou seja, “quando os poderes todos estiverem constituídos, quando houver um respeito à hierarquia, houver respeito aos poderes”. “Está tudo muito embrionário aqui. Então é muito temeroso tirar tudo. O banditismo vai crescer, os assaltos vão se tornar frequentes, ninguém vai ter segurança no país. E, se isso chegar a acontecer, eu vou ser o primeiro a arrumar as minhas coisas e ir, porque não quero ver a minha casa ser assaltada”.
Leia os principais trechos da entrevista:
CartaCapital - Como o senhor enxerga essa recente leva de imigrantes haitianos para o Brasil?
Vitor Hugo Irigaray - O Haiti sempre foi um país muito pobre, cheio de surpresas. É um lugar muito difícil, no sentido de que as coisas aqui demoram a acontecer. E é, como eles dizem aqui, Vivre l’inesperé (“Viver o inesperado”), em que cada dia é uma surpresa. Hoje estamos tranquilos, mas ontem era essa chikungunya [novo tipo de dengue]. Antes era o terremoto, depois a cólera, depois o furacão Isaac. E todo o estrago ocorre em função de uma falta de infraestrutura um pouco mais elaborada. As pessoas me perguntam: como é o Haiti de hoje e o de 25 anos atrás, quando eu estive trabalhando aqui. Eu digo: continua a mesma coisa. É igual: a luta pelo poder, todo mundo quer ter parte nesse quinhão do Estado, todo mundo quer o poder. É um país que todo mundo procura ajudar, mas o problema é que isso aqui não caminha. Quando caminha é a passos muito lentos.
O que me fez vir foi realmente vestir a camisa, pois estou vendo o trabalho do Itamaraty aqui. Mas há o problema de que não se pode trazer um diplomata para cá sem oferecer alguma coisa a ele. E eu vim sem que me oferecessem absolutamente nada. Muito pelo contrário, estou praticamente pagando para trabalhar. E eu não estou pedindo promoção, eu não preciso, já estou no quadro de especial. Eu não quero posto em Paris. Eu quis estar aqui e estarei até o momento em que achar que devo ficar.
Eu estava indo para El Salvador quando disse: “se quiserem anular minha remoção e me mandar para o Haiti...”. Nem acabei de fechar a boca e já estava sendo mandado para cá. Sou, praticamente, especialista em América Central. Estive em 1994 em El Salvador, depois Guatemala, Nicarágua, novamente El Salvador, Jordânia, Costa Rica e vim novamente para o Haiti.
CC - Por que essa leva está acontecendo agora se as tropas brasileiras estão no Brasil desde 2004 e se o terremoto que arrasou o país ocorreu há quatro anos?
VHI – O Brasil sempre foi, mesmo antes do terremoto, um país vitrine aqui em função do futebol. Eu me lembro quando saíram os primeiros gols do Brasil na Copa de 1990, e o povo saía na rua para celebrar. Perdemos, não fomos classificados, foi uma tristeza geral. Hoje pelas ruas vemos uma enorme quantidade de bandeiras do Brasil nas casas, no carro, mais até que em nosso País. Eu mesmo enfeitei o consulado todinho, mandei fazer todas as bandeiras.
Mas esse interesse pelo Brasil surgiu, na minha opinião, com a própria ocupação pelos militares. Na minha opinião pessoal, que não tem nada a ver com a opinião do Estado, esse interesse começou quando as Forças Armadas do Brasil se instalaram no Haiti. Já havia um namorico com o Brasil anteriormente, e esse namorico passou a ser um noivado. E hoje nós concretizamos esse noivado em um grande casamento. Porque nessa imigração, quase desregrada, nós já concedemos desde 2012, quando começou a funcionar a resolução normativa que controla a imigração no Brasil, 9.962 vistos permanentes. Sem contar nas centenas de milhares de pessoas que passaram pela fronteira, que somam mais de 30 mil pessoas.
O caráter do visto é humanitário. Então, em princípio, eu só poderia conceder visto para quem tivesse na miséria. É um visto que não requer nada, apenas um currículo que eles mesmo fazem, um comprovante de que vivem no país, o passaporte e o pagamento de uma taxa de 200 dólares. Nem exame de saúde pedimos, o que tenho insistido muito. Não que isso fosse impeditivo, pois eu acharia odioso não conceder visto a um haitiano porque ele não tem um braço, um olho, porque é cego ou porque esteja doente. Mas é para que ele possa, quando chegar ao Brasil, ter um acompanhamento médico adequado.
Estando com a documentação em dia, o visto é garantido. Não há nada que impeça esse visto hoje. O único problema é um certo atraso. Eu não posso receber todo mundo da porta, então criei um agendamento telefônico, onde recebo de 40 a 50 nomes por dia.
Ainda assim, a demanda reprimida é muito alta. Temos na base 1.500 pedidos por dia. Em dois meses chegamos a ter 120 mil. Mas eu não vou dar visto para todas essas pessoas, lógico. Primeiro porque não tenho capacidade para fazer isso, segundo porque iria esvaziar o país.
CC - Se não há restrição, qual o critério, então?
VHI - O critério é quem agenda. Só dá para agendar 40 ou 50 por dia. Mas quando eu vejo que há muito visto acumulado, nem atendo o telefone. Não posso deixar acumular, isso aqui não é um depósito de visto, não é um serviço de imigração.
CC - O senhor acredita que o Brasil tenha estrutura para absorver todos esses imigrantes?
VHI - Não posso entrar muito nessa seara, mas o Brasil está em franco desenvolvimento. Os haitianos são bem aceitos, sobretudo no sul do País. Os que vão com família são mais estáveis, quem vai sozinho fica perambulando, largam um emprego e vão em busca de outros. Até onde eu soube, existe muita demanda. As pessoas no Brasil gostam do trabalho dos haitianos, acham eles corretos e honestos.
CC - No Brasil, não temos ideia de como muitos haitianos são contrários à Minustah. Conversando com pessoas ligadas aos movimentos sociais aqui...
VHI - São todos a favor.
CC - Na verdade, a grande maioria é contrária.
VHI - À Minustah? Eu não sabia disso. Mas são contra por quê? Olha, eu já vivi nesse país com Forças Armadas, e o nome já diz: força armada. O fuzil controla. Se você tira a arma, quem controla? Eu já disse e torno a repetir: o dia em que tirarem a missão, isso vai virar um caos. Essa é minha opinião, a minha visão. Os haitianos não estão preparados, não existe uma força que possa garantir a segurança. E se não há segurança como vamos ter paz?
Eu, pessoalmente, acredito que a presença da Minustah não é apenas importante, como também necessária. Enquanto o país não encontrar seu verdadeiro sendeiro, o caminho da legalidade, da democracia, de um país democrático, não podemos sair. Eu vejo com muita preocupação a saída das forças da Minustah.
CC – Então, na visão do senhor, isso não poderia ser feito a curto prazo?
VHI - Isso eu não posso dizer para você. Mas tudo está muito embrionário aqui. Então é muito temeroso você tirar de repente tudo de uma vez. O banditismo vai crescer, os assaltos vão se tornar frequentes, ninguém vai ter segurança no país. E se isso chegar a acontecer, eu vou ser o primeiro a arrumar as minhas coisas e ir, porque não quero ver a minha casa ser assaltada.
CC - Como o senhor visualiza o futuro do país? Os militares brasileiros dizem que a missão sairá do Haiti quando o país puder caminhar com suas próprias pernas. O que seria esse caminhar com as próprias pernas?
VHI - Esse caminhar com as próprias pernas será quando os poderes todos estiverem constituídos, quando houver um respeito à hierarquia, respeito aos poderes. Porque você não pode brincar, como era no passado. Durante os três anos em que estive aqui da primeira vez tivemos cinco presidentes. Então, acho que isso acontecerá na hora em que os poderes, sobretudo o Judiciário, estiverem bem estabelecidos, sem influências externas, como previa Montesquieu.
Eu comungo muito com a Minustah. Acho que só podemos sair daqui se essa força, seja pequena ou simbólica, continuar. Porque já estava no inconsciente das pessoas e continuará o fato de que a Minustah ainda está aqui. Não precisa ser uma força extracomunal, com 2 mil ou 3 mil soldados. Pode ter uma pequena representatividade, para que se possa dizer que a Minustah ainda está controlando um pouco.
CC - A relação do haitiano em relação ao Brasil mudou, então, depois da Minustah?
VHI - Ah, mudou, sim. Eles adoram o Brasil. Eles querem ir ao Brasil a qualquer preço. Você vê hoje os coiotes que vendem visto na fronteira, que ganham dinheiro com isso. O que às vezes até respinga no meu consulado, com acusações de que gente aqui de dentro recebe dinheiro para facilitar vistos. De fato, tínhamos uma funcionária haitiana aqui, mas tirei todos os haitianos de circuito, dos pontos focais. Hoje, eu agendo e meus colegas brasileiros fazem os vistos. Os haitianos trabalham no suporte.
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Carta Capital/montedo.com