"Os doadores foram enganados. Eles fizeram doações em resposta aos apelos para salvar vidas e ajudar os haitianos depois de um terremoto devastador. Agora, depois que milhões foram arrecadados, os sobreviventes estão morrendo de cólera e o dinheiro ainda está no banco"
Organização americana diz que só 27% das doações recebidas por 20 grandes ONGs foram efetivamente aplicadas no país caribenho
João Paulo Charleaux
A epidemia de cólera que já matou mais de 1.400 pessoas e deixou 20 mil infectados poderia ter sido evitada se as dezenas de ONGs instaladas no Haiti desde o terremoto de janeiro tivessem usado as doações recolhidas nos últimos dez meses, é o que diz um levantamento feito pela Disaster Accountability Project (DAP).
Até julho - seis meses após o terremoto de 7 graus na escala Richter que devastou o país, matou 300 mil pessoas e deixou mais de 1,5 milhão de desabrigados - apenas 27% do total de fundos arrecadados por 20 ONGs que atuam no Haiti havia sido usado para evitar surtos e epidemias. O resto, de acordo com a DAP, permanecia em bancos.
A Cruz Vermelha Americana havia usado apenas US$ 117 milhões dos US$ 464 milhões arrecadados. Outra ONG, a Care EUA, tinha gasto apenas US$ 9,6 milhões dos US$ 36,5 milhões arrecadados. Outras 18 ONGs fazem parte da lista e seus presidentes são responsabilizados nominalmente pela DAP.
"Os doadores foram enganados. Eles fizeram doações em resposta aos apelos para salvar vidas e ajudar os haitianos depois de um terremoto devastador. Agora, depois que milhões foram arrecadados, os sobreviventes estão morrendo de cólera e o dinheiro ainda está no banco", acusou o diretor executivo do DAP, Ben Smilowitz.
O documento não menciona as promessas de doações feitas por inúmeros países, que não se concretizaram. Em maio, quatro meses depois do terremoto, apenas 1,5% dos US$ 10 bilhões prometidos por Estados tinham sido depositados, de acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Ontem, a ONU disse ter recebido menos de 10% do apelo de US$ 164 milhões feito dez dias atrás para atender especificamente às necessidades criadas pela epidemia de cólera.
A revelação é ainda mais grave quando se sabe que 80% dos casos poderiam ser combatidos com soro caseiro - uma mistura simples de sal, açúcar e água. A transmissão também pode ser contida com o simples uso de sabão para lavar as mãos, mas a maioria dos haitianos não pode pagar por uma barra de sabão de US$ 0,50 nos mercados de Porto Príncipe.
Grandes organismos de ajuda humanitária, como os Médicos Sem Fronteiras (MSF) e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) não são citados pelo DAP. O diretor do MSF no Brasil, o canadense Tyler Fainstat, disse ao Estado que "a resposta das ONGs no Haiti não tem sido suficiente".
Segundo ele, a organização - que não recebe doações de Estados, apenas de doadores privados - responde atualmente por mais da metade dos atendimentos dos casos de cólera no país. "Atendemos a mais de 700 novas internações por dia e gastaremos todo o dinheiro arrecado depois do terremoto (US$ 137 milhões) até o fim do ano", disse.
O site da Care - cujo escritório nos EUA foi criticado no estudo - diz que a organização "ressalta a importância de o governo haitiano empenhar-se em uma aliança de longo prazo com organizações para resolver o problema da falta de água e das condições de higiene e saúde no país". Para a representante da Care no Haiti, Virginia Ubik, as soluções de longo prazo "devem ser atendidas pelo governo haitiano".
ESTADO DE SÃO PAULO