Sacrifícios da Primeira Guerra ressoam novamente em campos franceses
Cerimônias e inauguração de museu honram aqueles que morreram durante o conflito em região de muitas perdas
Steven Erlanger
Os restos mortais de alguns dos últimos soldados americanos da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) a ser identificados foram encontrados alguns anos atrás, enterrados em uma horta na pequena cidade de Chateau-Thierry, na França, segurando garrafas de vinho em seus braços cruzados. Eles morreram por causa de seus ferimentos em um hospital de uma fazenda vizinha.
Foto: NYT-Fileiras de túmulos no cemitério americano Aisne-Marne em Belleau, França |
Como as placas de identificação enferrujam rapidamente, os militares da época criaram seu próprio método para que os soldados mortos fossem reconhecidos no futuro: eles escreviam bilhetes identificando os mortos, com a data e circunstância de sua morte, e dois companheiros de categoria superior assinavam como testemunhas.
Então, eles colocavam os bilhetes em uma garrafa vazia e a colocavam nos braços do cadáver, explicou David Atkinson, superintendente do Cemitério Americano Aisne-Marne, localizado no sopé da colina onde foi travada a Batalha da Floresta de Belleau, um local sagrado para o Corpo de Fuzileiros Navais.
Mais de 116.500 soldados americanos morreram na Primeira Guerra Mundial em menos de seis meses, abatidos em um conflito que deveria encerrar todas as guerras. Nessa região da França – hoje verdejante de campos e colinas – cerca de 300 mil soldados foram mortos ou feridos em ambos os lados no verão de 1918, 70 mil deles americanos. Eles foram vitais para o bem-sucedido esforço para impedir que os alemães avançassem em Paris, a cerca de 80 km de distância e acessível agora por um trem suburbano.
A batalha aqui é considerada crucial, pois colocou fim a uma série de avanços alemães e frustrou sua tentativa de conseguir a vitória sobre o exército americano que havia desembarcado com força total.
O imaculado cemitério americano em Belleau e outro nas proximidades, conhecido como Cemitério Americano Oise-Aisne é estruturado como uma catedral ao ar livre, contêm juntos mais de 8 mil túmulos americanos. As lápides de mármore italiano são alinhadas em fileiras, como a formação de uma parada dos mortos.
Muitos dos nomes – como Mike Zlotcha, um soldado de Michigan que morreu em 23 de setembro de 1918, ou Cataldo Carletta, um soldado da Pensilvânia que morreu em 16 de julho de 1918 – eram de origem europeia. Pelo menos 18% dos soldados dos Estados Unidos que lutaram na Primeira Guerra Mundial não nasceram nos Estados Unidos, disse Atkinson. Muitos eram imigrantes da Europa que foram a França para lutar e morrer.
Todos os mortos foram lamentados na sexta-feira, uma data observada em toda a Europa por marcar o aniversário do armistício que começou às 11 horas do dia 11 do mês 11 de 1918. Apesar de 11/11/11 não ser seu centenário, há certa importância na data.
O presidente Nicolas Sarkozy da França dedicou grande parte de seu dia às comemorações em homenagem a Georges Clemenceau, líder da França durante a guerra, e Charles Peguy, o amado poeta francês que morreu em Chateu-Thierry perto na primeira batalha de Marne. "Tudo começa em misticismo e termina em política", escreveu Peguy.
Sarkozy também foi para Meaux, nas proximidades, na sexta-feira, para inaugurar o Le Musee de la Guerre Grande (o Museu da Grande Guerra), um edifício de 7 mil metros quadrados dedicado a artefatos históricos da guerra, perto de um memorial americano erguido em 1932.
Quase todos os artefatos foram acumuladas por Jean-Pierre Verney, 66 anos, o neto de uma mulher alemã. Inspirado pelos contos de veteranos, ele ficou fascinado com a guerra e começou a comprar itens em mercados de pulga e casas de leilão. Ele ficou obcecado com a coleção, vendendo "as joias e os móveis da minha esposa" para fazê-lo, disse Verney.
Na década de 1970, "as pessoas não estavam interessadas nisso e o Estado precisava ser cauteloso". Ele propôs apresentar sua coleção em vários museus e não obteve resposta. Mas em 2004, em uma comemoração da guerra, ele conheceu o prefeito de Meaux, Jean-François Cope, que agora dirige o partido de Sarkozy.
Um museu estrangeiro tinha oferecido a Verney cerca de € 2 milhões (US $ 2,7 milhões em taxas de câmbio atuais) pela sua coleção, mas ele queria mantê-la na França. Cope se dispôs a comprá-la por € 600 mil (US$ 823 mil) com a promessa de criação do museu.
Apenas cerca de 5% das 50 mil peças de Verney serão apresentadas: uniformes de mais de 30 nações, armas, cantis, sirenes, munições, granadas, máscaras de gás e roupas de proteção, próteses, lembranças patrióticas, arte feita por soldados entediados com conchas e munições. Há uma pistola Browning FN Modelo 1910, o mesmo tipo que Gavrilo Princip usou para assassinar o arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria e sua esposa em Sarajevo em 1914, a faísca que desencadeou a guerra. E, por cortesia do Estado francês, um tanque Renault 1917, um caminhão que abrigava pombos-correio e dois aviões de guerra, o frágil Bleriot XI e um biplano Spad XIII.
Há uma recriação de uma trincheira francesa e de uma alemã e filmes para fornecer contexto histórico para os anos entre 1870 e o fim da guerra.
Foto: NYT-Funcionário arruma manequim no Museu da Grande Guerra em Meaux, na França |
Os organizadores esperam receber até 100 mil visitantes por ano - o memorial de Verdun recebe cerca de 200 mil por ano. O interesse continua em alta: a editora Michelin irá lançar dois guias sobre as Guerras Mundiais e seus campos de batalha nesta sexta-feira, um sobre a área de Chateu-Thierry e outro sobre Verdun.
No sábado, em Fere-en-Tardenois, nas proximidades, outro memorial será inaugurado: uma estátua de bronze sobre um pedestal em homenagem aos soldados da 42º Divisão da Infantaria (Rainbow) dos Estados Unidos que morreram na Batalha de Croix Rouge em julho de 1918.
Esculpida pelo artista britânico James Butler, a estátua retrata um soldado americano carregando um companheiro morto. A estátua é um presente de um homem do Alabama, em nome de seu pai, o sargento William Johnson Frazer, que foi ferido na batalha.
Quanto à Verney, o que lhe interessa é a história humana da guerra, especialmente agora que o último soldado a servir no confronto morreu. Por isso, ele se sentiu ofendido quando uma conhecida historiadora francesa da Primeira Guerra Mundial, Annette Becker, disse que ele não passava de "um trabalhador braçal que acumulou tranqueiras sem legitimidade histórica".
Verney chamou a observação de "desprezível" e disse: "Eu não sou um colecionador. Eu sou um agricultor, eu trabalho com as mãos e com dificuldade."
Agora que o museu é uma realidade, Verney disse: "Eu vou deixar as trincheiras e refletir, e descansar um pouco."
iG/The New York Times