Uma combinação inteligente de energia solar e pequenas hidrelétricas ajudaria a estratégica região amazônica no desafio da defesa nacional
Fernando Gabeira, SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA, AM
Presença armada. Exército e FAB patrulham a área, mas conexão de internet não existe e jovens vão às lan houses só para jogos virtuais
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A Cabeça do Cachorro, uma região do extremo noroeste do Brasil, tem esse nome por causa de sua forma no mapa. Com 200 quilômetros quadrados, duas fronteiras (Colômbia e Venezuela), 23 etnias e quatro idiomas, é uma complexa área da selva amazônica diante da qual uma frase nos conforta: o Exército e a FAB cuidam. Quem se arrisca a verificar in loco, pagando o equivalente a uma viagem à Europa, descobre algo que o Complexo do Alemão, no Rio, e as favelas de Porto Príncipe revelam: a realidade é complexa demais para se resolver apenas com soldados armados.
Ao chegar a São Gabriel da Cachoeira (AM), a cidade mais importante da região, quem tentar usar os banheiros do aeroporto, recua diante do cheiro insuportável. Quem administra esse aeroporto?, é a pergunta que vem à cabeça. Ninguém, responde o agente da PF que faz plantão em dias de voo. Aeronáutica, Infraero e prefeitura disputam a primazia. Como ninguém venceu, ninguém se instalou.
O cenário é deslumbrante. Banhada pelo Rio Negro, principal personagem da Cabeça do Cachorro, São Gabriel, com praias de branquíssimas areias, poderia ser um polo turístico. Mas os vários pontos de deságue do esgoto no Rio Negro mostram que ainda se está muito longe desse sonho.
Com 40 mil habitantes, sede da Brigada de Infantaria de Selva, São Gabriel não se comunica. A conexão de internet não existe, embora as lan houses estejam sempre cheias de adolescentes. Elas servem apenas para os jogos virtuais e são envoltas numa penumbra de inferninho. A única conexão telefônica é pela Tim, assim mesmo, de vez em quando, em certos lugares. É precisamente nessa peleja para se comunicar que o visitante descobre uma realidade maior: o apagão.
Energia e conexão não se resolvem com a presença armada. O Brasil gastou R$ 1,4 bilhão para instalar o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), baseado num supercomputador, radares e aviões de patrulha. Mas de que adianta esse aparato no ar se, no solo, não há conexão?
Sede da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, transferida de Niterói para a Amazônia, São Gabriel não é uma ilha isolada. Os militares se comunicam e os telefones fixos funcionam. Mas é muito pouco para a mais importante cidade de uma região de floresta que faz fronteira com dois países, um deles a Colômbia, que vive, ao mesmo tempo, uma luta contra a guerrilha das Farc e o tráfico de drogas - e os dois juntos em algumas regiões.
D. Marta, cozinheira do pequeno restaurante Íris, na beira do Negro, encerra seu expediente às 15 horas, religiosamente. Ela não pode faltar às aulas de informática que começam quando fecha o restaurante. Assim como ela, centenas de pessoas em São Gabriel aprendem a informática para usá-la na chegada da plena conexão. A posição estratégica e a vontade das pessoas justificam a transformação de São Gabriel numa cidade inteligente, o primeiro pulo do gato que o século 21 oferece a uma região que precisa não só crescer, mas responder com eficácia às necessidades de defesa nacional.
Um projeto de informatização da Cabeça do Cachorro não custa mais que a reforma do Maracanã. E mesmo se ultrapassar R$ 1 bilhão, seus ganhos a longo prazo são muito maiores. O único, e, por enquanto, intransponível, obstáculo é político. Que candidato teria condições, diante das massas metropolitanas, de afirmar a primazia do controle da Amazônia sobre a Copa do Mundo?
Ainda assim, existe um outro obstáculo, quando se pensa na alternativa de cooperação estrangeira: o argumento da soberania nacional. Mas o próprio Sivam, comprado com muito custo, dependeu da tecnologia estrangeira.
O Brasil tem sete postos de fronteira na região da Cabeça do Cachorro. De um modo geral, são comandados por um tenente e mantêm boas relações com as comunidades indígenas. Acontece que a presença do Exército o tornou uma espécie de símbolo do governo. Há momentos em que os postos não podem compartilhar a energia com os índios.
São os mais difíceis. A comunidade indígena trata o Exército como se tivesse falhado na tarefa de levar melhorias para aquela área do Brasil. Nem sempre é possível produzir energia excedente nos postos. Além disso, a FAB não transporta botijões de gás. Eles sobem em barcos o Rio Negro e, em certos percursos, precisam superar nove cachoeiras para alcançar seu destino. O motor é destacado do barco e ambos são carregados nas costas por trilhas na selva. É outro ponto frágil não só da economia como da própria segurança.
O século 21 oferece o segundo pulo do gato para a Cabeça do Cachorro: uma combinação de energia solar com pequenas hidrelétricas. Há algumas experiências com energia solar na região. Não foram bem porque não se pensou em treinar gente para manutenção. Há chuva diária e a Cabeça do Cachorro é uma região de muitos raios. Mas não é algo intransponível em termos técnicos.
De novo, a questão dos recursos. Quem veio de Pequim após a reunião dos emergentes em novembro constatou que a China deu passos gigantescos na energia solar. O adjetivo não se refere à quantidade, porque na China tudo se faz com grandes números. É que os chineses conseguem produzir uma energia solar muito mais barata do que nos primórdios do uso dessa fonte.
Soja por energia solar seria uma boa barganha. Mas ainda assim, os problemas da Cabeça do Cachorro, não estariam de todo resolvidos. A saúde vive um caos, apesar da presença de um hospital administrado pelo Exército, em São Gabriel. Já o visitei em viagem oficial. Desta vez, cheguei sem comunicar com antecedência. É limpo, relativamente bem equipado e eficaz. No entanto, faltam especialistas e uma remoção de emergência custa R$ 30 mil. Quem pagaria isso? Na hora da emergência, há um jogo de empurra. A prefeitura de São Gabriel vive numa inadimplência radical. Segundo os moradores, o prefeito Pedro Garcia (PT-AM) não tem crédito nem para viajar de barco para Manaus. O hospital não opera cabeça ou coração. A existência de uma boa conexão de internet e um treinamento de seus cirurgiões poderiam abrir novas perspectivas, de intervenções monitoradas a distância.
Noventa por cento dos moradores de São Gabriel são indígenas. Têm grandes dificuldades de sobrevivência. O Rio Negro é bonito, mas suas águas são ácidas. A agricultura, basicamente centrada na mandioca, é pobre. Há poucos peixes e eles se refugiam nos igapós, florestas alagadas que lhes dão alimentos. Abundantes, para comer, só as formigas, bastante valorizadas nos pratos típicos.
As várias etnias da região conseguiram fundar uma Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Com o Instituto Socioambiental (ISA) e com uma pequena ajuda da Noruega e da Áustria, montaram uma rede de desenvolvimento sustentável ao longo do rio.
Não são boas as lembranças históricas. Os índios eram capturados pelos colonizadores e forçados a descer o rio desde o século 18. No período da exploração da borracha, de novo, foram capturados como mão de obra. Hoje, cerca de 4 mil famílias, mais de 10% da população, recebem o Bolsa Família. Mas o dinheiro adianta pouco, pois se gasta tudo numa viagem de barco à cidade para receber o benefício.
Os aposentados costumam se unir para reduzir os custos de viagem. Ainda assim há comerciantes que têm uma caixa de sapato cheia de cartões do Bolsa Família. É a forma que as pessoas têm para comprar algo, suprimindo o preço da viagem de barco.
Uma saída econômica para a região não é fácil. Mas o século 21 também oferece um pulo do gato: a biotecnologia. O nível de pesquisa brasileira na região é muito pequeno. Uma linguista que estuda os principais idiomas falados no Rio Negro fez um longo artigo sobre o tema e entregou à revista da Funai. Passaram-se quatro anos e ela não viu seu artigo impresso. Hoje escreve direto em inglês e publica no exterior.
Soldados índios
O Exército brasileiro é forte na região porque soube combinar a ciência militar clássica com o conhecimento local dos nativos. Os soldados, na maioria, são índios. De um ponto de vista de guerra de guerrilha, o País está pronto. Mas hoje, com os recursos disponíveis, a própria guerra de guerrilha se tornou muito mais sofisticada. Um soldado do Rio de Janeiro que serviu dois anos em Cucuí, onde o Rio Negro divide Brasil, Colômbia e Venezuela, revelou como é difícil a luta contra o tráfico de drogas: “Temos uns óculos especiais para monitorar o rio de noite. Quem passa com mais de 200 litros de gasolina, o limite permitido por pessoa, de um modo geral trabalha para as refinarias de coca. Mas quem passa com a droga sabe onde estamos, desembarca, abre uma trilha na selva e embarca de novo, um ou dois quilômetros abaixo”.
Os soldados venezuelanos têm uma boa relação com o posto. De vez em quando aparecem para usar a geladeira dos brasileiros, que, dentro de casa, têm um conforto razoável para a região. Mas o que impressionou o soldado carioca foi a superioridade em equipamentos do Exército colombiano. Isso se deve a dois fatores: a presença das Farc e a ajuda americana. “Quando os soldados colombianos descem o rio nas suas voadeiras” - relata o soldado carioca - “eu pergunto: o que é isso, meu irmão? São barcos incríveis, com metralhadoras Magnum apontadas para as margens do rio. Sempre tocam uma sirene avisando que sua missão é de paz.”
Não era preciso vir à Cabeça do Cachorro para compreender que soldados armados não bastam. A Amazônia, no momento, é o ponto escolhido dos haitianos para se refugiar depois do terremoto de janeiro de 2010. Entram em Brasileia, no Acre, Tabatinga, no Amazonas, sempre pelas fronteiras do Peru e da Bolívia. Hoje há tantos haitianos na Amazônia quanto soldados brasileiros em Porto Príncipe. Ironicamente, os problemas que as armas não resolvem lá acabam se transferindo para a Amazônia, onde o mesmo enigma nos desafia: problemas muito amplos para resolver apenas com armas.
O ESTADO DE SÃO PAULO/montedo.com
(Colaborou: Kerencya)