Após sete anos de presença militar no Haiti, treinamento de policiais ainda é insuficiente
Aldo Jofre Osorio/Opera Mundi
Bonecos de policiais da Minustah são vendidos em mercado popular em Porto Príncipe
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Em uma manhã rotineira da capital haitiana, uma jovem de cerca de 20 anos aborda um carro de patrulha da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) que espera, em um cruzamento, a luz verde do semáforo. “Tem uma mulher morta lá”, diz, apontando na direção de uma esquina, ao coronel brasileiro que está no banco do passageiro.
Frente à incompreensão do militar ao idioma local, a haitiana recorre ao espanhol: “Não sei se foi cólera, mas ela não parece estar ferida”. O militar brasileiro desce do carro da ONU e para uma viatura para comunicar a ocorrência. O agente haitiano olha na direção da mulher, faz um gesto de desprezo com as mãos e segue seu caminho.
A jovem morta, estirada no chão, com uma garrafinha de água na mão é ignorada por algumas pessoas que passam caminhando. Um homem com chapéu para e observa, curioso. Mães passam apressadas, puxando crianças pelas mãos, que viram o pescoço para olhar o corpo.
Depois de duas tentativas de parar algum agente para que fizesse a guarda do corpo até a chegada das autoridades responsáveis por retirá-lo da rua, o coronel tirou do carro uma pequena câmera e fotografou a primeira viatura que passou pelo cruzamento. “Ficou registrado, agora eles são os responsáveis pelo corpo”, afirmou à reportagem do Opera Mundi.
Aldo Jofre Osorio/Opera Mundi
Desafio da polícia haitiana é desvincular imagem
de truculência e autoritarismo diante da população
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O episódio evidencia as dificuldades dos soldados da Minustah no trato diário com os policiais haitianos, apesar da diminuição significativa dos índices de criminalidade na capital em comparação com o ano em que os militares brasileiros chegaram ao país, em meados de 2004.
Os soldados enviados no primeiro contingente, em sua maioria de batalhões do Rio Grande do Sul, relatam que, durante os primeiros meses de missão, corpos eram abandonados em via pública até se decomporem. Muitas vezes, os militares gaúchos se deparavam com cadáveres sem membros ou partes da cabeça, que viraram comida de cachorro.
A polícia local, diziam, não cooperava durante as operações. Passados sete anos da presença da ONU no país, que desembarcou com um mandato que prevê a reforma e profissionalização da instituição policial, o estabelecimento de um ambiente seguro e estável e a proteção aos Direitos Humanos, a hostilidade diminuiu. Entretanto, muitos problemas parecem continuar.
Em 2006, a missão de paz deu início ao programa de profissionalização da PNH (Polícia Nacional Haitiana). “Diversos programas de treinamentos da polícia estão em funcionamento, e incluem todos os níveis de hierarquia, indo desde a formação básica, de seis meses, até as unidades especializadas em proteção de fronteiras, da infância, combate a drogas e treino anti-sequestro”, afirma o chefe de Relações Públicas da Polícia Civil da ONU, Raymond Lamarre.
O porta-voz prefere não responder, no entanto, qual é a previsão para que a polícia haitiana possa se desempenhar sem o auxílio da Minustah: “Prefiro deixar que a PNH responda esta pergunta”, esquiva-se, ressaltando que cerca de três mil oficiais foram treinados desde o início da missão.
Atualmente a polícia haitiana conta com aproximadamente 9,5 mil agentes para uma população de 10 milhões de habitantes. Na última semana, o chefe da instituição anunciou que, ao longo do ano, o efetivo policial será reforçado, e deverá chegar a 12 mil.
Apesar de afirmar que a PHN evoluiu e que a polícia civil ONU tem feito um trabalho “excepcional” de treinamento, o general brasileiro Luiz Eduardo Ramos Pereira comandante das forças militares no país, corrobora uma afirmação feita com frequência pelos brasileiros no Haiti, de que a retirada das tropas poderia resultar na volta dos altos índices de criminalidade.
“A PNH não tem condições de substituir a Minustah sem formar mais 10 mil homens e isso é um processo, não dá pra fazer em um ano”, afirma. “A missão está aqui pela fragilidade do sistema atual, porque o Haiti ainda não tem capacidade de atender toda a demanda que as tropas têm. Se sairmos daqui hoje, quem vai ficar no nosso lugar?”, pergunta o general à reportagem do Opera Mundi.
Aldo Jofre Osorio/Opera Mundi
Minustah ainda não sabe dizer quando a PNH estará
apta a trabalhar sem o auxílio das tropas internacionais
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Para a International Crisis Group, no entanto, não basta a formação de policiais para a garantia da segurança. Em relatório, a organização humanitária afirma que a integridade da PNH depende investigação imediata dos antecedentes de todos os oficiais, para “retirar do Corpo policial aqueles que não cumpram com os requisitos devido a violações dos Direitos Humanos ou atividades criminosas, e apoiar os que cumprem”.
Com apenas 16 anos de existência, desde que o então presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide dissolveu o exército do país em 1994, a PNH é tradicionalmente associada à truculência e abusos de poder, como atirar a esmo durante protestos sociais.
Em um relatório de 2004, a Rede Nacional de Direitos Humanos do Haiti afirmava que a “dramática situação” da polícia, se deve ao fato de que a instituição “nunca se preocupou em impor regras de conduta na gestão de seu pessoal”. Segundo o informe, “posições de responsabilidade fantasiosas são atribuídas sem concurso para pessoas sem educação e treinamento em segurança”.
Suspeita-se, inclusive, de que policiais facilitaram e até forçaram a fuga de alguns dos 481 prisioneiros que escaparam da Penitenciária Nacional em 2005. Para a organização, o funcionamento da PNH não se enquadrada no de uma instituição estatal, e sim no de uma “milícia privada”, caracterizada por “corrupção, atos de roubo, estupro, sequestro, desaparecimentos, assassinatos e atos políticos”.