Tiffany Jackson, na foto com uniforme militar, foi estuprada por colegas na Coreia do Sul | Monica Almeida/The New York Times |
Nas cavernas de sua memória, Tiffany Jackson relembra o emprego que teve depois de deixar as Forças Armadas dos EUA, quando ainda usava trajes elegantes e trabalhava num arranha-céu com vista milionária.
Dois anos depois, ela havia mergulhado na raiva e no álcool e deixado seu emprego. Começou a andar com usuários de cocaína e se tornou dependente, encolhendo-se para se proteger do vento no Skid Row [região deteriorada da cidade de Los Angeles].
"A gente se sente impotente", disse ela, relembrando como, antes dona de de um apartamento, passou a dormir em hotéis degradados e depois nas ruas, onde se juntou ao crescente grupo das veteranas de guerra sem-teto nos EUA.
No momento em que o Pentágono revoga o veto a mulheres em funções de combate, as militares que voltam de missões enfrentam outro tipo de batalha: elas são o segmento que mais cresce na população sem-teto norte-americana.
Enquanto os retornados homens tornam-se sem-teto principalmente por abusos de substâncias e por doenças mentais, especialistas dizem que as veteranas enfrentam esses e outros problemas, incluindo a busca por moradia familiar e uma dificuldade ainda maior para encontrar empregos bem remunerados. Mas um caminho comum para as mulheres se tornarem sem-teto, segundo pesquisadores e psicólogos, é o trauma sexual militar (TSM), decorrente de agressões e assédios nos quartéis, o que pode levar ao transtorno do estresse pós-traumático.
Jackson inicialmente achou que poderia deixar "o incidente" para trás: aquela noite fora da Base Aérea de Suwon, na Coreia do Sul, em que ela diz ter sido agarrada por um colega pelo pescoço, no banheiro feminino de um bar, e estuprada no chão encharcado de urina. Mas, durante os seus sete anos entrando e saindo da condição de sem-teto, ela não conseguiu esquecer o trauma.
SEM-TETO
Dos 141 mil militares veteranos que passaram pelo menos uma noite em um albergue em 2011, quase 10% eram mulheres, segundo o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA. Em 2009, haviam sido 7,5%. As mulheres atualmente constituem 14% das forças americanas na ativa e 18% da Guarda Nacional do Exército e das Reservas.
Mas as veteranas também enfrentam uma complexa "teia de vulnerabilidade", segundo a médica Donna Washington, do centro médico do Departamento de Assuntos de Veteranos na zona oeste de Los Angeles, que tem estudado as formas pelas quais as mulheres viram sem-teto.
As veteranas têm propensão muito maior a serem mães solteiras do que os homens a serem pais solteiros. No entanto, mais de 60% dos programas habitacionais para veteranos em transição não aceitam crianças ou limitam sua idade e número.
Há também a escassez de empregos. Jennifer Cortez, 26, destacou-se como sargento, mas teve dificuldades para achar trabalho desde que deixou o Exército, em 2011. Ela dorme num colchão de ar na sala de estar da mãe, junto às 12 medalhas que ganhou em oito anos, inclusive em duas passagens pelo Iraque. Ofertas de emprego para ganhar o salário mínimo a deixam desnorteada. "Você pensa, puxa, será? Servi ao meu país, então varrer o chão é meio duro", disse ela.
Sem querer ser um ônus para a família, ela chegou a morar no seu carro, único espaço individual que possui.
Jennifer Cortez (com seu retrato militar) sofreu estresse pós-traumático e está desempregada | Monica Almeida/The New York Times |
AGRESSÕES SEXUAIS
Das mais de duas dúzias de veteranas entrevistadas pelo "New York Times", 16 disseram ter sido sexualmente agredidas durante a carreira militar. Um estudo da doutora Washington mostrou que 53% das veteranas sem-teto haviam passado por um trauma sexual nas Forças Armadas.
Ser sexualmente violentada enquanto serve ao país é "uma dupla quebra de confiança", segundo Lori Katz, diretora da Clínica de Saúde Feminina do Sistema de Saúde do Departamento de Assuntos dos Veteranos em Long Beach e cofundadora do Renew, um programa de tratamento para veteranas com TSM.
Jackson, 32, recebeu uma indenização completa por incapacidade por estresse pós-traumático em decorrência do seu trauma sexual, embora os benefícios para militares inicialmente tenham lhe sido negados.
Depois do estupro, seu comportamento mudou. Ela agrediu um sargento. De volta para casa, perdeu seu emprego de vendedora após desmaiar, bêbada, no meio de um telefonema profissional. "Parecia que eu estava realmente sã", disse ela. "Mas estava morrendo por dentro." Ela cumpriu três anos de prisão por narcotráfico e finalmente se abriu sobre o estupro com um psiquiatra na prisão.
No caso de Lauren Felber, foi um instinto de autopreservação que a levou às Forças Armadas: ela disse que era molestada pelo pai durante a juventude. "Ele está morto agora", disse secamente. Ela achava que o Exército a fortaleceria.
Quando Felber retornou, uma debilitante complicação do herpes tornou dolorosas suas tentativas de trabalhar, inclusive em bares e na construção civil. Ela se tornou viciada em analgésicos como a metadona. O prazo de validade da acolhida que recebeu nos sofás de amigos expirou, e ela rumou para o centro de Los Angeles. Dormia em escadarias. Frequentadores das calçadas lhe ensinaram os macetes para arrumar comida grátis. "Na rua, todo mundo está vendendo alguma coisa, nem que seja a amizade", disse ela.
Mas a vida está finalmente melhorando: ela recentemente se mudou para um apartamento, por meio de um programa do Departamento de Assuntos dos Veteranos conhecido pela sigla HUD-Vash, que fornece habitação permanente e outros serviços.
VETERANAS E MÃES
Quando as mulheres veteranas regressam do exterior, elas esperam em média quatro meses por uma moradia estável, o que deixa as que têm filhos sob maior risco de se tornarem sem-teto. A ex-paraquedista do Exército Monica Figueroa, 22, morou na oficina mecânica de um parente na região de Los Angeles, dando banho no seu bebê em uma pia usada para óleos e solventes, até que, com alguma ajuda, eles acharam uma moradia temporária.
Michelle Mathis, 30, mãe solteira de três filhos, vagou por sete lugares temporários desde que voltou para casa, em 2005, com uma lesão cerebral. Mathis, que era especialista química no Iraque, precisa de um GPS para se lembrar do caminho até o supermercado ou a escola dos filhos. Ela disse que não se sentia segura em um albergue com os filhos e que por isso eles vivem em um quarto alugado de uma amiga, também ameaçada de despejo.
Prometendo resolver até 2015 a situação dos veteranos sem-teto, o governo está despejando milhões de dólares em programas assistenciais como o HUD-Vash.
Dos beneficiários, 13% são mulheres, sendo um terço delas com filhos.
Em Long Beach, na Califórnia, a ex-oficial da Força Aérea Cindi, com mestrado no currículo, contou ter sido intimidada e posta no ostracismo por uma superior. Depois de sair das Forças Armadas, ela caiu em um casamento violento e, por razões de segurança, pediu que seu sobrenome não fosse citado.
Após anos de frustrações, Cindi participou de um programa para mulheres vítimas de traumas sexuais militares e, finalmente, ficou pronta para trilhar novos caminhos. "Sou mais do que a soma das minhas experiências", disse ela, lendo seu diário. "Sou mais do que o meu passado."
FOLHA.COM (NYT)/montedo.com