MP apura desvio de armas no Exército
Material - em parte da "Campanha do Desarmamento" - teria sido subtraído de quartéis
Por Guilherme Arêas, Marcos Araújo e Michele Meireles
Juiz de Fora - O Ministério Público Militar (MPM) investiga o desvio de armas entregues pela Polícia Federal e Justiça - parte delas oriundas da "Campanha do Desarmamento" - que teria ocorrido dentro de quartéis do Exército na cidade. Os armamentos deveriam ter sido destruídos no 4º Depósito de Suprimentos, porém, investigações apontaram que parte deles retornou às ruas. A suspeita surgiu quando uma dessas armas teria sido apreendida depois da prática de um delito. A averiguação já dura cerca de um mês, e o inquérito policial militar corre sob segredo de justiça. Uma força-tarefa, formada por Exército, Ministério Público Militar e polícias Civil e Federal, foi criada em paralelo para apurar o derrame de armamentos na cidade. Ainda não há estimativa do número de materiais que teriam sido subtraídos, mas a preocupação das autoridades é que a situação agrave o quadro da segurança pública na cidade, já que as armas estariam chegando às mãos de criminosos.
"Nossa preocupação é saber como estas armas estão chegando nas ruas. É fato que há um crescente na criminalidade, e muitos crimes são cometidos com o uso de armas de fogo", enfatizou o delegado chefe da Polícia Federal, Claudio Dornelas. Ele destacou que as investigações estão a cargo do Ministério Público Militar, e que o papel das polícias é ajudar a levantar elementos que possam levar aos autores.
O oficial de comunicação da 4ª Região Militar, coronel Cesar Lúcius Bessa informou que "o Exército apura todos os desvios, tudo que não seja certo". Ele afirmou que o inquérito policial militar, que investiga o sumiço das armas, já foi concluído e remetido ao Ministério Público Militar. "É um processo longo e complexo, que envolve todos os quartéis, já que os armamentos podem ter sido entregues em qualquer um deles. Estamos fazendo o caminho inverso destas armas."
Já o Ministério Público esclareceu que já "está atuando neste feito" e que o processo corre em segredo de justiça para que o andamento não seja comprometido. O procurador Ulysses da Silva Costa Filho informou que enviou a Brasília, sede do MPM, um pedido para que os outros procuradores da cidade também atuem no caso. "O procedimento está bem encaminhado."
O delegado da PF Claudio Dornelas afirmou que recebeu nesta quinta-feira (14) um levantamento das armas recolhidas pela Polícia Federal nos últimos 12 meses, a maioria delas durante a "Campanha do Desarmamento", e que haviam sido remetidas ao Exército. Segundo dados da PF, entre janeiro de 2011 e 11 de fevereiro deste ano, 645 armas foram entregue por meio da Campanha no município. "São milhares de armas. A maioria delas de calibre permitido. A ideia é criar um banco de dados para que possamos seguir o rastro destas armas, confrontando a numeração dos armamentos recolhidos nas ruas com os que deveriam ter sido destruídos ou entregues no Exército." Segundo o delegado, todas elas passarão por perícia que será feita também pela Polícia Civil. O chefe do 4º Departamento da Polícia Civil de Juiz de Fora, Rogério de Melo Franco Assis de Araújo, foi procurado para comentar a situação, porém, sua assessoria informou que ele estaria em uma reunião externa e que não foi localizado.
Caminho até a destruição
De acordo com o Exército Brasileiro, as armas entregues na "Campanha do Desarmamento" e aquelas sob custódia da Justiça devem ser destruídas pela instituição. Antes de serem encaminhadas para destruição por corte, solda, fogo "ou por qualquer outra forma para que as armas não representem mais nenhum risco", passam por perícia e cadastramento.
Armas e mortes nas mesmas regiões
A preocupação quanto ao acesso às armas de fogo é também da sociedade que assiste ao avanço da criminalidade, principalmente o número crescente de homicídios. Na segunda reportagem da série "Basta de violência!", a Tribuna traça o mapa das armas de fogo na cidade, bem como o perfil de quem foi pego portando esses objetos de forma irregular. Para isso, foram consultados mais de 700 arquivos divulgados pela Polícia Militar entre os meses de fevereiro de 2012 e fevereiro de 2013. Os documentos continham o resumo de milhares de ocorrências criminais, das quais 166 foram selecionadas por haver apreensões de algum tipo de arma de fogo. O resultado desse trabalho apontou informações que merecem atenção: os locais com maior quantidade de armamento apreendido - as regiões Norte, Sudeste e Leste - são os mesmos das mortes violentas ocorridas no município nos últimos meses. Da mesma forma, o perfil médio das vítimas de homicídios - homens jovens de até 25 anos - coincide com o dos presos com algum tipo de arma.
Os dados oficiais da Polícia Militar apontam que 332 revólveres, pistolas, carabinas e outros modelos foram apreendidos em 2012 em Juiz de Fora, número 27% maior do que no ano anterior (260). O percentual, que pode indicar a existência de mais materiais bélicos chegando às mãos da sociedade civil de forma clandestina. Outra estatística preocupa: 69 das 99 vítimas de homicídios na cidade no ano passado foram mortas após serem baleadas. E não apenas as armas clandestinas preocupam.
Especialistas e autoridades ouvidas pela Tribuna parecem concordar que o problema é semelhante ao que acontece com a questão das drogas: não é suficiente apenas as polícias combaterem e retirar de circulação os materiais ilícitos, sem que haja um trabalho de interrupção do fluxo das armas, desde a origem. Enquanto esse ciclo não for quebrado, a arma de fogo continuará sendo um objeto de fácil acesso, inclusive para menores de idade. No levantamento feito pela Tribuna, a pessoa mais nova pega com arma de fogo no período analisado tinha 12 anos. Trata-se de um garoto que mal saiu da infância e já guardava um revólver calibre 38 em sua casa no Bairro Ipiranga, na Zona Sul, onde a polícia ainda encontrou mais de 60 pedras de crack, em outubro do ano passado.
Jovens aliciados para executar vítimas
Ainda conforme o mapeamento, a Zona Norte é a campeã em apreensões, com quase 40% do total das sete regiões da cidade. Para um dos titulares da 3ª Delegacia de Polícia Civil, Rodolfo Rolli, responsável pela Zona Norte, a questão das armas e do crescimento dos homicídios tem relação com o tráfico de drogas, que mudou a maneira de inserir adolescentes e jovens no esquema. "Eles eram aliciados para entregar drogas e, agora, como já começam a aparecer nas investigações, estão sendo usados para a execução de pessoas. Os chefes do tráfico são os donos das armas, que estão sendo repassadas para esses garotos usarem em acertos de contas. Muitas dessas cobranças terminam em mortes."
No levantamento da Tribuna, o tráfico de drogas realmente aparece associado à boa parte das ocorrências de apreensão de armas. Também chamam a atenção os casos em que os portadores, geralmente adolescentes, alegam que compraram as armas para se proteger de integrantes de gangues rivais. Entre aqueles que informam onde adquiriram os revólveres, a maioria aponta o lado clandestino da feira da Avenida Brasil, realizada aos domingos, no mesmo horário da feira legalizada. O delegado Rodolfo Rolli, no entanto, acredita tratar-se mais de uma resposta fácil dos criminosos do que necessariamente do principal local de distribuição dos artefatos.
"Três oitão"
Os revólveres são os preferidos entre os cidadãos armados detidos pela PM na cidade. O mais tradicional, o calibre 38, conhecido popularmente por "três oitão", lidera, com 66 das 166 apreensões analisadas pela reportagem.
Atos infracionais estão mais violentos
Para o coordenador de área do Instituto Sou da Paz, com sede em São Paulo, Bruno Langeani, é preciso haver um trabalho qualitativo de apreensão por parte das polícias. "Não basta trabalhar no varejo, recolher a arma e pronto. É preciso agir com inteligência, saber de onde vem, a fim de interromper o fluxo. Também é necessário ter a ciência de que os bandidos estão adotando novas estratégias para conseguir as armas, como roubá-las das empresas privadas e do exército. Assim, os governantes precisam adotar novas ações para lidar com essas situações".
Conforme o assessor de comunicação da 4ª Região da Polícia Militar (RPM), major Paulo Alex Moreira, a corporação recebe informações dos atendimentos que são feitos nos hospitais e dos boletins de ocorrência, o que permite traçar metas e aumentar o número de operações focadas na apreensão. "Entretanto, temos que destacar que as armas chegam ao município por diversos meios, pelas rodovias e há acessos nas áreas de fronteiras, o que mostra haver a necessidade de articulação entre outros órgãos competentes para que o problema seja estancado. "
Ele também afirma que trabalho de apreensão realizado pela PM está focado em todas as regiões da cidade. "Trabalhos com o mapeamento das zonas quentes, o que nos permite monitorar as áreas, alcançando toda a cidade. Se houver pontos onde há grande reincidência, empregamos neste local ações mais ostensivas a fim de identificar a origem do problema e saná-lo."
A titular da Vara da Infância e da Juventude, juíza Maria Cecília Golner Stephan, reconhece um recrudescimento da violência nos atos infracionais recebidos pela Vara. A magistrada considera que a falta de estrutura familiar tem sua parcela de responsabilidade por levar jovens ao mundo da criminalidade, no entanto, pondera que é preciso haver uma intervenção pública para mudar esse quadro. "Não adianta ter uma praça, sem ter uma bola, sem ter um monitor, sem alguém para ensinar. Tenho certeza que o Poder Público tem profissionais voltados para este tipo de incentivo."
No HPS, um baleado a cada 36 horas
A situação afeta diretamente a área da saúde pública. Se, há quatro anos, o Hospital de Pronto Socorro (HPS) recebia uma vítima de arma de fogo a cada três dias, hoje, no período de 36 horas (um dia e meio), a unidade registra a entrada de um baleado. De 2009 para 2012 houve um acréscimo de 122% no número de pacientes feridos a bala recebidos pela instituição hospitalar.
De acordo com o diretor-geral do hospital e mestre em saúde coletiva, Clorivaldo Rocha Corrêa, essas pacientes demandam atendimento de emergência e urgência, acionando vários setores da unidade. Segundo ele, a violência gera custos que poderiam ser empregados em outros atendimentos. "O resultado é a mobilização de diversos recursos para esse tipo de atendimento como: plantonistas da cirurgia, técnicos da enfermagem, ultrassom, raio x, tomografia, laboratório, agência de transfusão de sangue, sala de urgência e centro cirúrgico, ou seja, o hospital inteiro." Clorivaldo explica que o tratamento de um paciente que fica internado por dois meses com ferimento mais grave, permanecendo no CTI pode chegar a um custo superior a R$ 20 mil.
Ainda como ele aponta, o ferimento por arma de fogo é a principal causa externa de mortalidade no Brasil na população abaixo de 40 anos de idade. "É um impacto na saúde pública, porque são pessoas de vida ativa, com potencial de trabalho e estudo que são ceifadas de forma abrupta em função da violência instituída", afirma ele, acrescentando que esse tipo de situação aparentemente é evitável. "É diferente de uma pessoa que teve um infarto e morre. Ninguém precisa morrer com 18 anos vítima de arma de fogo. Infelizmente, em Juiz de Fora, percebemos uma violência crescente. Todo dia recebemos um paciente seja baleado ou esfaqueado", enfatiza.
Tribuna de Minas/montedo.com