Brasileira no exército americano é a única a participar da Guerra do Iraque
Como milhares de imigrantes latinos, Fernanda Marney trocou a cidade de Cabedelo, na Paraíba, pelo sonho de viver nos Estados Unidos. Nove anos depois, divorciada e sem emprego fixo, viu no US Army uma forma rápida de conseguir a estabilidade financeira e a cidadania americana que tanto almejava. Resultado: virou sargento no Exército americano
Mariana Kneipp
Notícia ruim não chega pelo telefone, bate à porta. A advogada Maria Lucia Pinheiro, 60 anos, tem uma razão para acreditar nisso: sua filha, Fernanda Marney, 35, é sargento do exército americano e a única brasileira a ter ido em missão ao Iraque, em 2010. “Quando ela me ligou para contar que tinha sido convocada, entrei em depressão”, diz Maria Lucia. Por conta disso, a filha resolveu passar uns dias com a mãe no Brasil antes de embarcar para a guerra. “Foi quando ela me explicou que eu era a beneficiária de seu seguro de vida e que se acontecesse alguma coisa a ela, dois soldados viriam pessoalmente me contar, aqui no Brasil. Como nos filmes.”
As cenas da aventura começam em 1999, quando Fernanda, aos 23 anos, foi para os Estados Unidos pela primeira vez. Na época, ela era funcionária pública em João Pessoa e vivia com a mãe em Cabedelo, a poucos quilômetros da capital. De lá, acompanhava o processo de separação do irmão, um ano mais novo, que acabara de se divorciar na Flórida. Na tentativa de acalmá-lo, decidiu ir vistá-lo e nunca mais voltou. Como no clássico enredo dos imigrantes latinos que vão tentar a vida nos EUA, a adaptação de Fernanda foi difícil: muito trabalho e dinheiro suficiente apenas para pagar as contas e alimentar o sonho de que a vida, uma hora, daria uma guinada. E deu. Em dois anos, Fernanda ficou fluente no inglês e, de camareira, foi promovida a gerente do hotel onde trabalhava. Ali, conheceu o ex-marido, um ex-militar da marinha, de quem se separou cinco anos depois, quando seu american dream começou a ganhar contornos realísticos.
“Eu já tinha o Greencard (permissão para morar e trabalhar nos Estados Unidos), mas estava triste, sozinha. Pensava muito em voltar para o Brasil”, diz Fernanda. “Mas ouvi falar sobre os benefícios de se alistar: bons salários, carteira assinada, auxílio moradia e plano de saúde. Fui até lá ver como a coisa funcionava”. Na ocasião, Fernanda sofria não apenas com a separação, mas com uma Flórida que amargava o pior momento da crise econômica americana. Ou seja, vibrou tanto com as condições que o US Army oferecia que se esqueceu de um detalhe: as guerras.
"Um bom sargento americano ganha U$ 5 mil, o triplo do que se paga no Brasil"
Yes, we can
Animada com a ideia de melhorar de vida e ainda ganhar a cidadania americana (que, ao contrário do Green Card, é definitiva), Fernanda se alistou no exército em 2008, aos 32 anos. Não se imaginava vestindo uma farda, mas cumpriu uma a uma as etapas do processo. Entregou a documentação necessária e passou nos testes físicos (polichinelos, abdominais e corrida) e na prova de conhecimentos gerais. Em menos de um mês lá estava ela na base do Kansas, no Centro-Oeste dos EUA, e com a cidadania americana nas mãos.
No dia em que foi aceita, Fernanda teve de assinar um termo de confidencialidade que a proíbe de dar detalhes experiências durante o tempo de serviço, o que explica sua dificuldade em detalhar o que viveu (e ainda vive) na instituição. “Vendi meu corpo e alma. No documento que assinei estava escrito com todas as letras: ‘você é propriedade do governo americano’. Ou seja, uma vez recrutada para uma missão, não posso me recusar a ir ou irei para a cadeia”, afirma. Ainda assim, Fernanda preferiu se deixar guiar pelas boas impressões da corporação – hoje, como sargento, ela ganha cerca de US$ 5 mil por mês, o triplo do que se paga pela mesma patente no Brasil – e, animada, ligou para a mãe para contar a novidade.
D. Maria Lucia andava preocupada com a voz triste da filha desde a separação e não queria mais vê-la trabalhando em hotel. Então, apesar de surpresa com a notícia, resolveu apoiá-la. “Pensei: ‘vamos ver se em um ano ela não está de volta’. E errei”, diz. Fernanda não só não regressou ao Brasil como, em meados de 2009, descobriu que, em seis meses, embarcaria para o Iraque. “Fiz de tudo para não ir. Não me sentia pronta para a guerra” , diz. “Minha única opção de dispensa seria uma gravidez. Até tentei, mas não consegui”, assume a brasileira, que a esta altura namorava Joshua, um soldado americano que havia conhecido no Kansas. Bastou chegar no campo de treinamento, ainda nos EUA, que Fernanda mudou de opinião. “Eu achava que a guerra era sórdida. Depois, comecei a discernir melhor as coisas. Mudei minha cabeça de civil, passei a ver a nobreza de defender uma nação”.
"“Vendi minha alma”, pensou Fernanda ao assinar o termo de adesão ao exército"
Coração de mãe
Foto em familia - A sargento, entre o irmão Marcílio e a mãe D. Maria Lucia |
Do lado de cá do Equador, o sentimento era outro. D. Maria Lucia estava em depressão. “Não dormia e mal saía de casa”, diz. “Sentia raiva de mim por tê-la estimulado a se alistar. Meu peito doía, tomava remédios e até tentei fazer terapia, mas não consegui. Não funcionou para mim”. Foi por meio da internet que ela conseguiu se perdoar por ter incentivado a filha a se alistar . “Criei blogs e vi nisso uma forma de me distrair”, conta. O principal deles, http://paraibananaarmydosestadosunidos.blogspot.com/, foi construído com fotos e trechos de e-mails que Fernanda enviava para a mãe e transformou-se no diário virtual de uma paraibana nas trincheiras do Iraque.
Chamada de supply specialist, Fernanda era uma das responsáveis por organizar o material que chegava ao seu batalhão (armas, munição, comida e equipamentos de grande porte, como trailers e caminhões). Antes de partir para a missão, ela passou por um treinamento de choque de seis meses com o que chama de “o máximo de realidade”. Além de andar armada 24 horas por dia, aprendeu a inspecionar suspeitos e a aplicar primeiros socorros. Dentro de sua base no Kansas, havia um centro de treinamento, com recriações de vilas iraquianas, como num cenário de filme. “Você brinca de exército. Tem ataques-surpresa, homens, crianças e até grávidas-bomba”, diz, com a naturalidade de quem aprendeu “a bloquear as emoções” durante os treinos.
Destino: Kuwait
Dia 1° de janeiro de 2010, chegou a hora de embarcar. Para despistar inimigos, o caminho até o Iraque durou 48 horas. Foram ao todo oito grupos de soldados – cada um com 200 homens e mulheres – e três escalas: na Irlanda, na Alemanha e no Kuwait, onde se dividiram. Para Fernanda, “o primeiro mês foi terrível”, sob uma temperatura de 55ºC. “Muita gente desmaiou e precisou receber soro. No dia seguinte, o sargento verificava se tínhamos condições de sair. Eles controlam tudo. Até a quantidade de água.”
Marie Claire/montedo.com