Guerra fictícia
Jornalistas participam de treinamento para enfrentar situações extremas em áreas de conflito
Curso oferecido a profissionais da mídia visa a aumentar a segurança de quem atua em coberturas de guerra
Carlos Etchichury
carlos.etchichury@zerohora.com.br
Orientações das aulas teóricas e dos exercícios práticos serviram para profissionais evitar erros desnecessários - Foto: Lauro Alves / Agencia RBS |
Pelo terreno irregular, militares e jornalistas sobem em direção ao topo de uma favela, na zona norte carioca. Vestem coletes capazes de suportar tiros AK-47 e protegem a cabeça com capacetes azuis, iguais aos empregados em missão de paz da ONU. À frente, soldados, armados com fuzil e pistolas, orientam o avanço pelos becos estreitos em meio a intenso tiroteio com armas de guerra.
— Baixa cabeça e corre até aquela parede, sem parar — orienta um militar para três profissionais da Rede Globo, um jornalista do portal IG e o repórter de Zero Hora, instantes antes de as forças de segurança pacificarem a comunidade fictícia, no entardecer de quinta-feira, dia 26 de julho.
A chegada ao cume, sem mortos ou feridos, simbolizou mais uma etapa cumprida no Estágio para Jornalistas em Área de Conflito oferecido pelo Exército no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), no Rio de Janeiro, semana passada.
De segunda a sexta-feira, o curso envolveu aulas teóricas e exercícios práticos. A ideia central é aumentar a segurança de quem atua em áreas de conflito, como incursões por vilas dominadas pelo narcotráfico, guerras convencionais, insurreições armadas.
O curso não prepara ninguém para guerra. Nenhum lugar do mundo forma seres humanos, civis ou militares, imunes às atrocidades de um conflito bélico.
Foto: Lauro Alves |
Mas as orientações apresentadas por oficiais das Forças Armadas, policiais militares e jornalistas familiarizados ao matraquear dos fuzis automáticos serve, sobretudo, para evitar erros desnecessários que podem levar à morte ou, na melhor das hipóteses, resultar em mutilações severas.
Nos primeiros dois dias, Lauro Alves, repórter fotográfico de Zero Hora, eu e outros colegas — cinegrafistas, fotógrafos, repórteres dos principais veículos de comunicação do país — assistimos a palestras sobre temas variados como terrorismo, negociação com refém, regras de engajamento da ONU, minas terrestres e explosivos, armas químicas, biológicas e nucleares.
O grupo saiu da sala de aula com uma certeza, repetida à exaustão pelo Capitão de Fragata Teotônio Toscano:
— Não há limites para a maldade humana.
A imersão teórica foi ótima, mas jornalista gosta mesmo é de cheirar no fogo. E foi literalmente o que aconteceu nas instruções práticas. Num dos adestramentos, rastejamos dentro de um imóvel em chamas, dominado pela fumaça. Descobrimos o óbvio: rente ao chão, é possível enfrentar as labaredas até um local seguro, sem perder a consciência.
A experiência limite, porém, fora vivenciada horas antes. Sentimos na pele — nos olhos e na garganta também, é claro — os efeitos do gás lacrimogêneo entrando numa sala inundada pelo gás. Ele queima as narinas, arranha a garganta, traqueia, esôfago. Provoca tosse. As lágrimas, involuntárias, vertem como se tivéssemos perdido um ente querido. É quase insuportável.
— Não lava o rosto e não esfrega os olhos. Se colocar água, é pior — grita o capitão do Exército Alexandre Shoji, um dos monitores destacados pelo CCOPAB para acompanhar os jornalistas.
O final do treinamento foi marcado pela tensão e pelo medo. Quando retornávamos para os alojamentos, após um dia exaustivo, homens vestindo toucas ninja pararam o ônibus onde estávamos, agrediram o capitão Shoji com um tapa no rosto e renderam todos os jornalistas. Estávamos sequestrados.
Foto: Lauro Alves |
Fomos encapuzados, imobilizados com as mãos para trás e insultados durante 1h20min. Suspeitávamos de que se tratava de mais uma etapa do curso, talvez a mais realista de todas, mas, no fundo, ninguém tinha certeza do que estava ocorrendo. Aos berros, os supostos traficantes gritavam:
— Vai morrer, jornalista de merda!
Quatro colegas, todas mulheres, não resistiram e desabaram aos prantos. Um cinegrafista, lotado em Brasília, decidiu enfrentar os tomadores de refém e fez o que jamais deve ser feito em situações análogas: saiu correndo. Capturado, teria sido executado, se a situação fosse real. Ao final, o major Amilton Moleta, da Divisão de Doutrina do CCOPAB, explicou:
— Com este exercício, vocês experimentaram uma situação limite que pode acontecer na vida real.
Próximo da morte
Editor-executivo da Folha de São Paulo, Sérgio Dávila, um dos convidados pelo CCOPAB, contou a sua experiência na invasão do Iraque pelos EUA. Um mês antes de os primeiros Tomahawk desabarem sobre Bagdá, arrasando tudo o que havia num raio de 300 metros, Dávila, então correspondente em Nova York, foi convidado para cobrir o conflito.
— Eu havia decidido que iria, mas pedi 24 horas para consultar a minha mulher — disse Dávila, um dos palestrantes no estágio.
Se consultar a esposa é algo natural para qualquer jornalista convidado a cobrir uma guerra, no caso de Dávila viajar para área de conflito remetia a um drama familiar. O jornalista é genro de José Hamilton Ribeiro, ícone dos correspondentes de guerra do Brasil.
A história é conhecida, mas vale rememorar. Quatro décadas atrás, José Hamilton, destacado pela revista Realidade para cobrir a Guerra do Vietnã, perdeu a perna esquerda ao pisar numa mina terrestre um dia antes de voltar para casa.
— Minha mulher conversou com a mãe dela, que disse: minha filha, você vai dizer para o seu marido não ir, como eu fiz, e ele vai acabar indo, como seu pai foi.
Antes de embarcar, Dávila procurou auxílio das Forças Armadas. Descobriu que não havia nenhum curso preparatório no país. O mais próximo era ministrado por militares argentinos, mas só ocorreria apenas em dezembro, quando, se sobrevivesse, é claro, provavelmente já estivesse de volta. Em 33 dias de cobertura, Dávila viu os horrores da guerra.
— Dos 180 correspondentes hospedados no hotel Palestine, em Bagdá, QG dos correspondentes, 18 morreram durante o conflito — revelou o jornalista, que esteve duas vezes próximo de morrer durante a cobertura.
ZERO HORA/montedo.com