Carlos Chagas
(Continuação do prefácio para o livro sobre Mário David Andreazza, ministro dos Transportes nos governos Costa e Silva e Garrastazu Médici e ministro do Interior no governo João Figueiredo)
Mário Andreaza |
Nem tudo eram obras e realizações. Havia mil obstáculos laterais a enfrentar. Um deles, o da repressão, mesmo nos tempos em que Costa e Silva procurava neutralizar os seus radicais. Andreazza sofria ao saber que abusos começavam a acontecer com mais intensidade, bem antes da decretação do AI-5. Aconteciam também por provocação da esquerda furibunda, aquela que trocava as passeatas por assaltos a bancos e ações violentas.
Um querido amigo, jornalista de qualidades profundas, Washington Novaes, foi de repente preso, acusado de perigoso agente marxista. Busquei o auxílio de Andreazza, que por sua vez descobriu estar o companheiro nas masmorras da Polícia Federal, no Rio. Desgastou-se o ministro, ao se responsabilizar pela liberdade de Washington, mas, dias depois, disse-me, desabafando: “o clima esquenta cada vez mais. Se pegarem você, meu amigo de fé, creio que não poderei fazer nada...”
Quanto mais o tempo passava, mais se exacerbava a radicalização, até o dia em que o Congresso, no exercício de suas prerrogativas, negou licença para que fosse processado pelos ministros militares o jovem deputado Márcio Moreira Alves. Num arroubo de inconsequência, ele discursara apelando para as mocinhas casadoiras não dançarem com os jovens cadetes e tenentes, nos bailes da Independência, demonstrando seu repúdio à ditadura. Um pronunciamento bobo, que nem mereceu réplica dos líderes do governo, mas que no dia seguinte estava distribuído por todos os quartéis do país, com o preâmbulo de “veja como o Congresso trata nossas gloriosas Forças Armadas”.
Um dia depois, Costa e Silva não resistiu e, em vez de aceitar a solução do vice-presidente Pedro Aleixo, pela decretação do Estado de Sítio, cedeu e assinou o Ato Institucional no. 5, o mais abjeto instrumento de ditadura do século. Como Editor de Política de “O Globo”, tentei falar com Andreazza, e foi a única vez, em tantos anos, antes e depois, que ele não atendeu o telefone. Estava arrasado, soube depois.
De repente, a uma semana da reabertura do Congresso, então posto em recesso, do envio da emenda constitucional extinguindo o AI-5 e da constitucionalização do regime, sobrevêm drama digno de ser contado por Shakespeare: o presidente é acometido por um derrame cerebral [...]
Os meses correram, o país entregue à sanha até de cabos corneteiros, refugiando-se o ministro dos Transportes na intensificação dos planos e metas em andamento. A tempestade começava a amainar e o velho presidente decidiu fazer, depois, o que não fizera antes: reagir e reconstitucionalizar o país, revogando o AI-5. Valeu-se do espírito democrático do vice-presidente Pedro Aleixo. Foi quando convidou-me para Secretário de Imprensa e porta-voz, encarregado de transmitir com cautela as novas propostas.
Deixei o palácio das Laranjeiras, onde estava o presidente, e antes de chegar em casa para discutir o convite com minha mulher, dirigi-me ao apartamento de Andreazza, em Copacabana. Qual sua opinião? Valeria à pena aceitar, passando a integrar um governo de exceção, mesmo sob o segredo de que seria para ajudar a acabar com a ditadura?
Recebi palavras de estímulo, ainda que um alerta óbvio: “não pense que vai ser fácil. Muito menos que seus amigos mais chegados vão entender. Não importa, benvindo ao barco.”
Fácil não foi, porque depois de alguns dias transmitindo notícias sobre a abertura política, começaram as pressões dos radicais. O ministro da Justiça, Gama e Silva, um jurila (misto de jurista e de gorila) comentou “que o dr. Chagas estava distribuindo um noticiário infame a respeito do futuro da Revolução”. Como dispunha do apoio do presidente da República, dei de ombros e segui em frente, até satisfeito por identificar os adversários. Todos os dias, no início e no fim do expediente, no palácio do Planalto, recebia de Costa e Silva indagações a respeito de como a imprensa acompanhava a evolução dos acontecimentos.
De repente, a uma semana da reabertura do Congresso, então posto em recesso, do envio da emenda constitucional extinguindo o AI-5 e da constitucionalização do regime, sobrevêm drama digno de ser contado por Shakespeare: o presidente é acometido por um derrame cerebral, fruto do conflito entre o seu consciente, disposto a enfrentar resistências e não passar à História como ditador, e o inconsciente de um general que chegara à chefia do governo por força de um movimento de força. (Continua amanhã)
Cláudio Humberto/montedo.com