Em fronteira, macarrão vira iguaria, com larva de sobremesa
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
ENVIADA ESPECIAL A RONDÔNIA E ACRE
Soldados fazem refeição na selva; o Exército brasileiro faz a Operação Agata, que tem como objetivo patrulhar os quase 17 mil km de território de fronteira (Fábio Braga/FolhaPress) |
Depois de dias sobrevivendo na selva à base de farofa com sardinha em lata, o sargento Lucas Rufino aprendeu uma receita gourmet que nem precisa de fogueira: miojo de dois litros.
Em uma garrafa de água de dois litros, basta por o miojo, adicionar o tempero de saquinho e sacudir bastante. "Fica molinho, você nem percebe que está frio", ele conta, sorrindo.
Soldado mostra o gorgo, larva comstível (Fabio Braga/Folha Press) |
De sobremesa, outra iguaria: o gongo, a larva branca que fica dentro do coco babaçu; "O segredo é arrancar a cabeça com os dentes, aí a larva para de se mexer",explica. "Tem gosto de coco, é uma delícia."
Rufino passou 25 dias longe de casa na operação Curare, teve folga de cinco dias, e voltou para a selva. Já está há seis dias na reserva de Mapinguari, em Rondônia, perto da fronteira com a Bolívia, na Operação Ágata 7.
A vida dos militares que servem na Amazônia é dura, mas trata-se de um dos postos mais cobiçados. "Ser um tenente de 23, 24 anos, comandando um pelotão de fronteira, na primeira linha de defesa do país na selva, é o sonho de muita gente", diz o capitão Renato Ximenes.
Nas patrulhas de selva, a única maneira de se locomover é a pé. São 20km, 25 km por dia, abrindo caminho na mata e carregando mochilas que pesam até 35 quilos, cheias de munições e mantimentos, além dos fuzis ParaFal.
Os soldados normalmente recebem uma ração comercial: um saco plástico com pé de moleque, bolacha água e sal, miojo, um saco de farofa e uma lata de sardinhas. "É farofa de manhã, à tarde e à noite", conta o soldado Elias de Sousa. "Se eu chegar em casa e minha mulher me oferecer farofa eu digo negativo, nem pensar."Eles se referem à comida como "bizú".
No fim do dia, os militares abrem uma clareira para montar o acampamento. Muitos preferem não usar as barracas, que eles chamam de iglus. "Se passa uma matilha de queixadas à noite, não sobra nada. Fora a umidade. Faz muito frio na selva à noite", diz o capitão Ximenes. Os militares dormem nas redes de selva, que vêm com mosquiteiro e um telhadinho. A cada duas horas, trocam o turno na vigilância noturna. Aprendem a "torar" (dormir, na gíria deles) a prestações.
Tomar banho é outro desafio. O mergulho nos igarapés soa idílico, até que se ouçam as histórias sobre as arraias. Ficam camufladas no chão de areia e quem pisa leva uma ferroada muito dolorida. Dois anos atrás, em uma missão na selva, um soldado teve de ser resgatado à noite, de helicóptero, depois de pisar numa arraia.
Patrulha no Rio Apunam, fronteira com a Bolívia (Fábio Braga/Folha Press) |
Há outros riscos. Em algumas regiões, os soldados contam mais de dez malárias. A dengue é cada vez mais comum. E tem também a leishmaniose, "a ferida braba". A leishmaniose é transmitida pela picada do mosquito flebótomo, que se transforma em uma ferida crônica e vai crescendo. O tratamento é doloroso: os soldados ficam afastados cerca de um mês e recebem mais de 50 injeções.
O Exército fornece um repelente potente, mas muitos dos soldados não o usam, dizendo que "queima na pele".
Muitos dos oficiais ostentam orgulhosos o "distintivo" do Centro de Instrução Guerra na Selva (Cigs), com uma onça. É muito difícil entrar no guerra na selva, o temido curso de 9 semanas para combate em matas. Mais difícil ainda é concluir o curso: de 100 militares, calcula-se que apenas 60 terminem. Em treinos excruciantes, eles aprendem a manipular cobras, sobreviver na selva sem alimentos, combater em rios cheios de piranha, andar na lama com dezenas de quilos nas costas.
Para os soldados que servem na Amazônia, o mais difícil é ficar dias e dias longe de casa, muitas vezes sem acesso a celular, nem internet. "Quando meu filho nasceu, demorei dois meses para vê-lo, estava servindo em Santa Rosa dos Purus, aonde só se chega de barco ou aviãozinho", conta o cabo Wesley Araújo.
Soldados do Grupo de Combate do pelotão de Fuzileiros de selva do 54 BIS fazem patrulha no entorno do Parque Nacional do Mapinguari, em busca de madeireiros ilegais (Fábio Braga/Folha Press) |
No índice de lonjura "Coca-Cola dois litros", Santa Rosa dos Purus está no topo - lá, a a garrafa sai por R$ 10. Em Plácido de Castro, um pelotão de fronteira de mais fácil acesso, a Coca de dois litros sai por R$ 7. Em São Paulo, custa R$ 5.
Os oficiais que trabalham nesses postos remotos da Amazônia ganham um adicional de 20% para compensar o custo de vida. Um tenente em pelotão de fronteira na Amazônia chega a tirar R$ 6 mil. Os soldados entram ganhando na faixa de R$ 800, depois de um ano podem estar recebendo R$ 1300 a R$ 1700. O tempo de permanência máximo de um soldado profissional (não oficial de carreira) no Exército é 7 anos.
"Se estivesse trabalhando em construção, ia tirar no máximo cerca de R$ 800 por mês", conta o soldado Marcos Fernandes. Ele era jogador de futebol, entrou no exército em 2010. Quando sair, não tem nem ideia do que vai fazer. Alguns fazem cursos técnicos no último ano e saem para trabalhar como fixadores de piso ou técnicos de ar condicionado.
Patrulha fluvial na entrada da cidade que fica na região da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru (Fabio Braga/Folha Press) |
As mulheres só servem em funções que não são de combate. Na maioria das vezes, o "segmento feminino", como são chamadas, são ligadas à saúde.
A aspirante Caroline Ortiz era a única mulher entre mais de 70 homens no bloqueio da estrada BR 364 na semana passada. Médica, ela ia ficar longe de casa 15 dias, dormindo em um alojamento na usina de Jirau, com os outros soldados. Ela ganha R$ 5400. Está juntando dinheiro para fazer residência em neonatologia em Curitiba ou no Hospital Militar em Brasília.
Enquanto esperava no bloqueio de estrada, a militar Caroline lia o best-seller erótico "Cinquenta tons de cinza", de E L James. "A gente precisa se distrair um pouquinho, né?"
Folha de São Paulo/montedo.com