COMO FUNCIONAM – E COMO PODEM SE EXPANDIR – TRÊS POLOS EXCEPCIONAIS DE FORMAÇÃO DE TALENTOS NO BRASIL
O TENENTE-CORONEL EDUARDO DE SOUSA LIMA, PRÓ-REITOR DE PESQUISA DO IME, ONDE O MÉRITO DITA AS REGRAS (RÍGIDAS) MANTIDAS PELO INSTITUTO. “A ENTRADA NO VESTIBULAR É SOMENTE A CORRIDA DE CEM METROS. DEPOIS, VEM A MARATONA” (FOTO: EDUARDO ZAPPIA) |
O mesmíssimo país das mazelas do sistema de ensino tem três ótimos exemplos de cultivo e aprimoramento de talentos: as escolas de engenharia ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e IME (Instituto Militar de Engenharia) e a escola de matemática Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). É pouco, muito pouco, para um país de 200 milhões de habitantes. Entender como elas funcionam é um passo essencial para disseminar o processo de seleção e formação de talentos. As receitas são múltiplas, às vezes, contraditórias: o IME aposta na disciplina, o Impa no menosprezo à burocracia. Mas, em geral, as lições são cristalinas. Listemos algumas:
A Talento gera talento. Por isso o Impa está sempre em busca dos melhores professores, e seu campo de prospecção é o mundo inteiro.
B Os padrões são internacionais. No Impa, os trabalhos seguem parâmetros globais, inclusive com ajuda de especialistas estrangeiros. No ITA, o modelo seguido foi do centro de excelência americano MIT.
C Não basta selecionar talentos, é preciso incentivar sua formação. Assim se explica a disseminação de olimpíadas de matemática pelo país, com o efeito de estimular a garotada a resolver problemas de raciocínio.
D No IME, os alunos são incentivados a fazer intercâmbio no quarto ano – nem tão jovens que não sejam maduros para aproveitar, nem tão perto da formatura que não tenham tempo de passar a experiência aos colegas.
E O saber tem a missão de transformar. Por isso o novo projeto do ITA é, mais do que gerar técnicos excelentes, formar empreendedores com vontade de mudar o mundo.
Carlos Matheus Silva Santos desembarcou menino no Rio de Janeiro, mas já desanimado. Completara 14 anos quando deixou para trás a cidade natal, Aracaju (SE), e as longas e enfadonhas aulas em uma escola de ensino fundamental. Na capital carioca, porém, a sua vida mudou. Diante de um grupo de especialistas, animou-se tanto que se pôs a tagarelar. “Ele falava pelos cotovelos”, diz Jacob Palis, um dos mais brilhantes matemáticos do Brasil. “Enunciou alguns teoremas, mas, claramente, não tinha a menor ideia sobre o que estava falando.” Ainda assim, Palis apostou no garoto. “Ele expunha as ideias de forma coerente e vi naquela atitude um claro sintoma de inteligência.”
Pois a aposta rendeu. Muito. Carlos Matheus, também conhecido como o “Menino”, mergulhou nos números e, aos 19 anos, havia concluído o doutorado num campo espinhoso da matemática (existe algum que não seja?): os sistemas dinâmicos, com aplicações que vão desde a previsão do tempo até a análise de cotações de ações. “Ele se tornou Ph.D. sem nunca ter ido à universidade”, afirma Palis, orgulhoso. “Aliás, sem nem sequer ter concluído o ensino médio.”
É sério. Tal façanha só foi possível por conta de um motivo, que pode ser resumido a quatro letrinhas: Impa. Elas formam a sigla de Instituto de Matemática Pura e Aplicada, para onde Matheus foi levado ao desembarcar no Rio. Visto do alto, em um voo panorâmico sobre a capital carioca, o Impa não passa de um pontinho de concreto, cercado pelo verde denso da Floresta da Tijuca, pouco abaixo do calcanhar do Cristo Redentor.
De perto, é um pujante centro de pesquisas em matemática, voltado para cursos de pós-graduação. Nas áreas em que atua, encara sem timidez a produção (em quantidade e qualidade) das mais renomadas universidades do planeta, em uma lista que inclui nomões como Princeton e Harvard. Faz isso porque, ali, termos como barreiras burocráticas, chatices formais e lenga-lengas similares perdem o sentido diante de uma palavra mais poderosa: talento.
É isso o que demonstra o caso do “Menino”. Para fazer valer o Ph.D. de Matheus, os integrantes da instituição se desdobraram pelos labirintos do Planalto. Bateram em várias portas do Ministério da Educação até convencer o establishment de que era preciso reconhecer, formalmente, o feito do garoto. “Houve resistências, mas foram superadas”, afirma Palis. “Fala-se tanto em burocracia no país, mas foi o Brasil quem aprovou essa medida e tudo foi feito dentro da lei. Essa foi uma vitória das nossas instituições. Mostra que é possível cortar caminhos.”
Exceções que viram regra
Dito assim, parece que o caso do gênio sergipano é uma exceção. Não é. No Impa, inúmeros jovens, muitos entre os mais talentosos de suas gerações, tornaram-se doutores dando saltos sobre os ciclos convencionais da educação. Dois deles, Fernando Codá e Arthur Ávila, terminaram o doutorado pouco depois dos 20 anos. Hoje, ambos estão entre as estrelas nacionais das ciências duras. Este ano, são cotados para receber a Medalha Fields, uma espécie de Nobel da matemática.
Quer saber como isso tudo é possível? No Impa, não se busca nada menos do que a excelência. A escolha dos professores segue essa máxima. Eles são selecionados entre a nata do setor. Mesmo porque servem como chamariz, verdadeiros neons, para atrair jovens brilhantes. “Quando alguém com talento admira e confia no seu orientador, ele se joga para desenvolver o seu potencial”, afirma Palis, que já orientou 41 teses de doutorado. “Isso aconteceu comigo e vi o mesmo ocorrer com dezenas de jovens.” Note-se: Steve Jobs, o eterno guia da Apple, adotava uma lógica similar. Ele dizia: “Os bons gostam de trabalhar com os bons”.
O Impa, por isso mesmo, não percebe fronteiras ao convocar seus mestres. Ele tem 50 professores-pesquisadores, sendo 16 deles (ou um terço) estrangeiros. A miscelânea de passaportes é razoável. São cinco argentinos, três russos, um alemão, um americano, um britânico, um chileno, um espanhol, um iraquiano, um iugoslavo (nasceu na antiga Iugoslávia) e um venezuelano.
A mesma lógica multicultural aplica-se à seleção dos estudantes. Entre os alunos de mestrado (50 no total) e doutorado (92), metade é formada por estrangeiros. Nos cursos de pós-doutorado (60), essa participação sobe para sete em cada dez. “A nossa política é atrair os melhores cérebros e não importa onde estejam”, diz César Camacho, diretor da instituição, nascido no Peru. “Aliás, queremos nos expor ao mundo. As avaliações dos nossos trabalhos também seguem parâmetros internacionais. Muitas vezes, contamos com especialistas de outros países para nos ajudar a refletir sobre os nossos rumos.”
Essas contratações, contudo, só são viáveis porque o Impa soube desfazer um nó monumental. Desde 2001, a instituição se transformou, juridicamente, em uma organização social, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Ou seja, ela não é uma universidade convencional, algemada a concursos públicos para contratar professores, que acontecem em uma data peculiar do calendário: o sabe-se-lá-quando. (Não por acaso, pesquisas divulgadas nos últimos dois meses mostram que o Brasil claudica no ranking de escolas de ensino superior. O país não tem mais universidades entre as 200 melhores do mundo e nem sequer entre as dez mais relevantes dos países emergentes.) O Impa pode selecionar os pesquisadores que quiser, no momento que desejar, desde que tenha recursos para tanto.
Esse tipo de liberdade, ou flexibilidade de gestão, é uma baita vantagem competitiva. “Aproveitamos as janelas de oportunidade para atrair os melhores profissionais disponíveis no mercado”, diz Camacho. “Assim, se há uma crise na Europa e os matemáticos estão dispostos a vir para o Brasil, nós os chamamos.” O formato de organização social permite ainda a concessão de aumentos pontuais. “É perfeitamente concebível que um cientista ganhe mais após receber um prêmio internacional”, afirma Claudio Landim, pesquisador do Impa. “Trata-se de um reconhecimento do mérito. E nós fazemos isso”.
O Impa também soube inovar na busca por talentos. Em 2005, a entidade começou a jogar uma rede ampla e ambiciosa em busca de mentes brilhantes. Criou um arrastão de talentos: a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Diferentemente das competições convencionais, ela não testa o conhecimento formal da garotada. Avalia, sim, a capacidade de raciocínio. Isso a torna muito mais democrática. Além do mais, é aplicada em escolas públicas de todo o país. A olimpíada virou uma febre em muitos municípios do interior do Brasil, o que inclui grotões surpreendentes. A última edição da OBMEP, em 2013, reuniu quase 20 milhões de participantes.
Feras como Tábata Amaral de Pontes, de 19 anos, foram reveladas nessa competição. Nascida na periferia paulistana, seu pai era cobrador de ônibus e a mãe vendedora de flores. Aos 12 anos, ganhou uma medalha na OBMEP, em 2005. Depois vieram outras 30, em concursos dos mais variados. O estímulo foi tanto que a garota mergulhou nos livros e conseguiu bolsas em bons colégios. Em 2012, Tábata foi aceita em seis universidades “boazinhas”: Harvard, onde cursa ciências políticas e astrofísica, além de Princeton, Columbia, Yale, Pensilvânia e o Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia). “O mérito da OBMEP não consiste apenas em revelar pessoas que gostam de matemática”, diz César Camacho, o diretor do Impa. “Ela desperta nos estudantes o interesse pelas ciências exatas e isso é importante para o país. Esse é o seu principal impacto.”
Para atrair e fomentar talentos, o Impa também se desdobra em outro campo: a arrecadação de fundos. Conta com verbas federais e, não raro, com donativos de empresários como os irmãos Pedro e João Moreira Salles, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e o matemático americano James Simons, um dos maiores investidores do mundo. Agora, prepara um programa de endowment, similar ao das universidades americanas. “O Brasil não nos permite trabalhar com estabilidade no nível que desejamos”, afirma Camacho. “Com o endowment, teremos um fundo patrimonial, do qual utilizaremos a renda das aplicações.”
No ITA, receita similar
CARLOS AMÉRICO PACHECO, REITOR DO ITA. ELE COMANDA UMA VERDADEIRA REINVENÇÃO DA ESCOLA DE ENGENHARIA, NO INTERIOR PAULISTA. “OS NOSSOS ALUNOS DEVEM MUDAR O MUNDO, E NÃO SOMENTE MELHORÁ-LO UM POUQUINHO” (FOTO: ADRIANO VIZON/FOLHAPRESS) |
É grande a intersecção de méritos entre o Impa e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos. A instituição paulista tem o vestibular de engenharia mais concorrido do país. Ali, a excelência também dá o tom entre professores e alunos. Dois terços dos jovens que ingressam na faculdade ganharam medalhas em olimpíadas de matemática, física, química e computação. Nesse grupo, a média é de 2,5 medalhas per capita. Detalhe: no vestibular, não existe diferença de nota entre os medalhistas e o restante dos aprovados. Na prática, são todos do mesmo nível. Um nível excepcional. “É difícil uma escola estragar alunos desse tipo”, diz o reitor Carlos Américo Pacheco. Não por acaso, quem sai do ITA é disputado a tapa no mercado.
O ITA tem uma história incomum. Ela explica a sua notoriedade. Foi fundado em 1950, pelo marechal do ar Casimiro Montenegro Filho, um visionário, daqueles que usam binóculos com “B” maiúsculo. Entre 1943 e 1944, então tenente-coronel da Força Aérea Brasileira (FAB), ele passou pelos Estados Unidos, onde conheceu o Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Retornou ao Brasil com o objetivo de fincar a base da indústria aeronáutica local. Mas não trouxe na bagagem organogramas, croquis e teorias de gestão, copiadas da universidade americana. Trouxe Richard Harbert Smith, professor de engenharia aeronáutica do MIT, com passagens por instituições como a Johns Hopkins, em Maryland (EUA), e o Caltech. Smith foi empossado como o primeiro reitor do ITA. (É verdade. Isso aconteceu no Brasil.)
Em 1945, Smith realizou uma conferência na qual apresentou os pilares do então incipiente ITA. O discurso, intitulado Brasil, Futura Potência Aérea, deveria ser peça de leitura obrigatória nas escolas brasileiras, em qualquer curso no qual o tema inovação seja minusculamente relevante. “Smith vislumbrou, nos anos 40, a necessidade de formação de um cluster da indústria aeronáutica, muito antes desse termo surgir na literatura econômica”, diz Pacheco. “Nele, a escola aparecia como o primeiro passo de um processo.” As ideias de Smith, observe-se, foram lançadas quando o Brasil nem sonhava em ter uma indústria automobilística. A siderurgia engatinhava por aqui. O mais impressionante: o plano deu certo. Hoje, o parque aeronáutico brasileiro está entre os três maiores do mundo.
Agora, porém, o ITA quer se reinventar. “A escola envelheceu, perdeu o tônus”, diz Pacheco. “Precisamos tanto de inovações pedagógicas como de um banho de loja em nossos laboratórios.” O diagnóstico também aponta que os alunos da faculdade mudaram. Dificilmente prestariam atenção em aulas com três horas de verborragia. Outro ponto: é inegável que o instituto forma técnicos brilhantes. Mas, agora, quer ir além. “Não vamos copiar o MIT”, afirma o reitor. “Mas queremos que os nossos alunos assimilem a forma de pensar dos estudantes daquela instituição. Lá, ninguém quer melhorar as coisas um pouquinho. Eles querem mudar o mundo. É disso que precisamos.”
As alterações no ITA têm três frentes imediatas de ação. O contingente é uma delas. Hoje, a escola tem 600 alunos de graduação. Forma 170 engenheiros ao ano. Eram 120 até o ano passado. O plano é chegar a 240 em 2016. O total de estudantes de mestrado e doutorado também crescerá de 1,2 mil para 1,8 mil. Os 150 professores serão 300, sendo que 60 deles devem ser contratados em 2014.
Há metas mais ambiciosas. O ITA está criando um centro de inovação, que funcionará acoplado a um parque tecnológico, cujo foco será a manufatura avançada em áreas como a robótica. Partes do projeto começam a ser implantadas este ano. Outro objetivo é atrair empresas para o campus. “Hoje, elas vêm brigar pelos jovens que estão se formando”, diz Pacheco. “Queremos que elas cheguem mais cedo e desenvolvam projetos por aqui. Assim, poderão encantar os nossos alunos com suas ideias e não só com propostas comerciais.”
No IME, a apologia ao mérito
NO IME, A CERIMÔNIA DE ABERTURA DOS ENVELOPES (ACIMA) COM OS APROVADOS NO VESTIBULAR LOTA O AUDITÓRIO DA INSTITUIÇÃO, NA PRAIA VERMELHA, NO RIO. A LEITURA DOS NOMES DOS VENCEDORES É COMEMORADA COMO UM GOL. O EVENTO É TRANSMITIDO AO VIVO PARA O CEARÁ, QUE REÚNE CANDIDATOS DO NORDESTE. NA FORMATURA, OCORRE O TRADICIONAL LANÇAMENTO DE QUEPES PARA O AR. EQUIPAMENTOS E LABORATÓRIOS DE PONTA GARANTEM A QUALIDADE DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO E PÓS (FOTO: EDUARDO ZAPPIA) |
Não perder o tônus também é o desafio do Instituto Militar de Engenharia (IME), instalado na Praia Vermelha, no Rio. Para isso, ali, emprega-se uma palavra mágica: mérito – e com uma forte pitada de disciplina. O vestibular, dividido em duas etapas, é disputadíssimo. Na primeira, de 5,6 mil candidatos, sobram 800. Desses, cem são aprovados, sendo que 60% (a cota varia ano a ano) seguem a carreira militar. “O vestibular é só a corrida de cem metros”, diz o tenente-coronel e pró-reitor de Pesquisa Eduardo de Sousa Lima. “Depois, vem a maratona.”
Até o terceiro ano, todos os alunos frequentam as mesmas aulas. A partir daí, dá-se a especialização. Os melhores estudantes têm prioridade para optar por um ramo da engenharia como civil, computação, química ou mecânica. As vagas em cada carreira, no entanto, são limitadas. “Assim, quem fica para trás na classe não consegue escolher a especialidade que deseja”, afirma Victor Figueiredo, aluno do quarto ano. “O negócio, então, é estar sempre no topo.”
O IME aposta nos intercâmbios. Em geral, os alunos são estimulados a ganhar o mundo no quarto ano – um antes da formatura. “No terceiro, eles estão imaturos para aproveitar o conteúdo das viagens”, afirma Carlos Luiz Ferreira, pró-reitor de Graduação. “No quinto, ficariam pouco tempo na faculdade e não poderiam transferir o conhecimento adquirido para seus colegas.”
Em 2013, mais da metade da turma do quarto ano foi para o exterior. Perto de 40 jovens participaram do programa Ciência Sem Fronteiras, do governo federal. Grupos menores foram para ParisTech, a renomada escola de engenharia francesa, e para West Point, a academia militar americana. Qual o critério para a definição do destino dos alunos? O mérito, claro. Os melhores escolhem primeiro. “E eles sabem disso desde o momento que ingressam no IME”, diz Ferreira. “Fazemos isso porque acreditamos na qualificação dos nossos estudantes, o que também nos permite ter um projeto pedagógico bastante ousado.”
Ousadia, aliás, é o termo que permeia as escolhas, os planos e os métodos destas três instituições: Impa, ITA e IME. É, sem dúvida, um bom combustível para quem quiser, de alguma forma, reproduzi-las pelo país.
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