Passageiro relata drama durante acidente com Hércules C-130 ao pousar na Antártica
Avião da FAB transportava 40 pessoas, entre civis e militares; tripulação pediu para passageiros se afastarem: ‘pode explodir’
Hércules C-130 depois do acidente na Antártica, há uma semana - Arquivo pessoal |
EVANDRO ÉBOLI
BRASÍLIA - Um acidente com um avião Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira (FAB) na Antártica, ocorrido na quinta-feira passada, foi noticiado com discrição. A FAB divulgou uma nota de quatro linhas, informando que a aeronave se acidentou no pouso e que não houve feridos. Um passageiro que estava no voo, localizado pelo GLOBO, relatou o drama e a tensão que foi para quem estava no avião e os momentos posteriores ao acidente.
O Hércules cumpria mais uma missão do Programa Antártico Brasileiro. Entre militares e civis, que visitaram a estação, estima-se que 40 pessoas estavam a bordo. A testemunha conta que houve forte impacto no pouso, que deixou na pista um pedaço do trem de pouso, um motor e uma hélice. “A aeronave deslizou por alguns segundos até rodopiar”, conta o passageiro, que preferiu não ser identificado. Na sequência, um militar da tripulação ordenou que todos abandonassem a aeronave e soou uma sirene barulhenta.
Já do lado de fora, outra ordem: “Afastar, afastar! Pode explodir”. Entre os civis estavam presentes vários servidores públicos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), da Secretaria de Tesouro Nacional, da Secretaria do Orçamento Federal, além do pessoal do Ministério da Defesa. Abaixo, trechos do relato do passageiro do voo ao GLOBO.
“AFASTAR, AFASTAR! PODE EXPLODIR”
“Logo depois do forte impacto, a aeronave deslizou por alguns segundos até rodopiar pela pista antes de parar totalmente. No instante seguinte, veio de um suboficial da tripulação a ordem para abandonar a aeronave, enquanto a sirene soava de forma estridente alertando os passageiros sobre o perigo iminente. Rapidamente, todos se levantaram sem saber ainda o que estava acontecendo. Uma pequena gritaria contrastava com o silêncio que vinha da pista gelada. Assim foi nossa chegada à Antártica, numa quinta-feira, dia 27 de novembro, por volta das 11 da manhã, hora local. Já do lado de fora, os passageiros se aglomeravam sem saber para onde ir, quando se ouviu nova ordem: ‘afastar, afastar... pode explodir, pode explodir!!!!’ Meio sem rumo, as pessoas iam para o mais longe que podiam, ao mesmo tempo que tomavam consciência do que havia ocorrido, ao verem o grande C-130 desfalecido sobre a pista. Na aterrisagem, a aeronave deixou pela pista uma perna do trem de pouso, um motor e uma hélice, que estavam aproximadamente a 200 metros de onde nós estávamos. Apesar de a sensação térmica estar em torno de -20°C, o frio pouco importava naquele momento em que as pessoas percebiam que, por pouco, a aeronave não havia parado no mar.
“ERA ATERRORIZANTE A IDEIA DE A NOTÍCIA CHEGAR PELA IMPRENSA AOS FAMILIARES”
“Rapidamente após o acidente, militares chilenos chegaram próximo ao local para nos conduzir até a base deles. Na caminhada, um misto de susto e medo dominava o semblante de todos. Nesse instante, o sopro do forte vento, de aproximadamente 50 km/h era o único som que se ouvia. Ninguém falava nada. Era como se todos estivessem se perguntando se aquilo estava realmente acontecendo. Dez minutos após o acidente, todos já estavam devidamente abrigados na acolhedora estação chilena, onde foi montado um comitê de crise para definir as próximas ações. A preocupação, nesse instante, era tentar contato com os familiares no Brasil, pois era aterrorizante a ideia de a notícia chegar às famílias por meio da imprensa. O grande problema era a falta de sinal de celular, somente os telefones chilenos possibilitavam a comunicação. O temor aumentou quando um canal de televisão do Chile noticiou o acidente. Agora era questão de tempo para a imprensa brasileira replicar o ocorrido.”
“MAR MUITO AGITADO”
“A grande preocupação dos membros do comitê de crise era definir como seria possível viabilizar a retirada dos mais de 40 passageiros e tripulantes da Antártica, uma vez que o C-130 estava interditando a pista, o que impossibilitava o pouso de outra aeronave. Por esse motivo, decidiu-se pelo transporte de navio da Antártica para a cidade de Punta Arenas, no Chile. Decidido o meio de transporte, agora era necessário operacionalizar a retirada. O primeiro desafio era levar o grupo a bordo do navio de apoio oceanográfico Ary Rongel, embarcação pertencente à Marinha do Brasil que faz apoio aos pesquisadores brasileiros na Antártica. Para tanto, era necessário caminhar da estação chilena até o ponto em que o grupo iria ser embarcado em um bote para ser levado até o navio. Mais um problema: as condições meteorológicas não permitiam a operação: o vento estava demasiadamente forte e o mar muito agitado. Deveríamos aguardar! Aliás, esse foi o verbo mais conjugado na viagem."
“PRIMEIRA REFEIÇÃO DOS RESTOS DAS NOSSAS VIDAS”
“Gentilmente, os chilenos providenciaram almoço para todos, um saboroso filé de frango com purê de batata. Era a primeira refeição do resto de nossas vidas. À tarde, as condições ficaram mais severas, o vento aumentou de tal forma que era quase impossível caminhar do lado de fora da estação. Mesmo assim algumas pessoas se aventuraram em um passeio pela neve. Naquela altura, já pensávamos que teríamos que pernoitar na estação. No entanto, por volta das 17h, chegou a previsão de que teríamos uma janela entre 19h e 21h para realizar a operação de traslado para o navio. O tempo estava tão fechado e o vento tão forte que era difícil imaginar que em 2 horas as condições iriam melhorar, uma vez que qualquer coisa a mais de 100 metros de distância se perdia na profusão de branco e cinza que se misturava entre neve, céu, nuvens e neblina”.
“UMA PESSOA NÃO DURA TRÊS MINUTOS NA ÁGUA GELADA DA ANTÁRTICA”
“Durante nossa aventura, aprendemos a confiar nas previsões meteorológicas. Quase que milagrosamente, às 19h as condições já estavam propícias para fazer o traslado. O vento, que anteriormente soprava com fervor, agora havia baixado para pouco mais de 20 km/h. Dessa forma, pudemos caminhar até o local de embarcar nos botes, a cerca de 1 km da estação.Em grupos de 10 pessoas embarcamos nos botes para uma travessia de aproximadamente dez minutos até o navio Ary Rongel. Na verdade, era apenas um bote que ia e voltava até transportar todos. Nesse momento, duas coisas preocupavam: a primeira é que os meteorologistas de lá são muito bons, e, por isso, tínhamos pouco menos de 120 minutos para fazer quatro pernadas de bote, sendo que cada uma durava em torno de 25 minutos; e a segunda é que uma pessoa não dura mais do que três minutos em caso de queda nas águas geladas da Antártica. Passamos por essa fase sem muitos problemas, tirando o fato de que era impossível acabar a travessia sem ter sido batizado e, por consequência, chegar a bordo do Ary Rongel um tanto quanto molhado. Considerando que a temperatura da água estava em torno de 1°C e que vento já soprava mais forte, o frio nos castigou naquele momento”.
“UM DRAKE NO MEIO DO CAMINHO”
O embarque no Ary Rongel nos deu a sensação de estarmos chegando em casa. Estávamos em solo brasileiro, pelo menos era assim que nos sentíamos, com uma tripulação que se desdobrou para nos dar o máximo de conforto, apesar de haver bem menos leitos do que o número de embarcados. A bordo tínhamos boa comida, uma sala de estar que contava com uma vasta seleção de filmes e um camarote que, apesar de ser bastante espartano, dava para esticar o esqueleto. A roupa era a do corpo, mas a tripulação nos fez a benesse de conceder um kit para higiene pessoal. Ocorre que no meio do caminho havia uma pedra, ou melhor, um Drake (zona na extremidade da América do Sul e a Antártica, com as piores condições meteorológicas). Logo percebemos que a travessia não seria esse mar de rosas. Pouco antes da meia-noite, o navio já balançava bastante, fazendo as primeiras vítimas, que corriam para o médico clamando por um comprimido de Dramin. O nosso pequeno navio, com cerca de 75 metros de comprimento, não parava de chacoalhar. Na manhã seguinte, poucas pessoas se arriscavam a tomar café da manhã. No almoço foi a mesma coisa, apesar de os “lobos do mar” dizerem que não se podia deixar o estômago vazio e que ficar deitado era o mais aconselhado para não passar mal. O primeiro dia a bordo foi na cama para quase todos os “marinheiros de primeira viagem”.
“RISCO DE INCÊNDIO A BORDO DO NAVIO”
“O segundo dia de mar nos reservou mais um grande susto. O velho Ary Rongel de tanto balançar sentiu o golpe. Fomos acordados pela tripulação com a ordem de nos reunir na Praça d’Armas, pois havia sido detectado um vazamento de óleo que poderia levar a um incêndio a bordo, situação que a embarcação havia passado há pouco tempo. Mas, mais uma vez, não passou de um susto. A tripulação conseguiu conter o vazamento e realizar os reparos necessários. O alvorecer do quarto dia começou a trazer um alento para o grupo. Estávamos navegando no famoso Canal de Beagle, um dos locais mais belos do mundo. Por águas extremamente calmas rumávamos para o Norte acompanhados de lindas geleiras e cachoeiras que circundavam o navio a todo momento”.
“PACIÊNCIA, PERSEVERANÇA, ESPÍRITO DE GRUPO”
“Apesar de todos os percalços, a viagem foi muito proveitosa. Pudemos aprender como brasileiros, militares e civis, se entregam a uma inóspita condição de vida para defender os seus ideais. A base brasileira Comandante Ferraz, na Antártica, abriga pesquisadores que abandonam o aconchego dos seus lares por meses a fio atrás de respostas para as suas teses e dissertações. Ao final dessa aventura, é certo afirmar que voltamos para casa com nossa bagagem mais carregada. Muitas foram as lições aprendidas. Paciência, perseverança, espírito de grupo e preocupação com o próximo fizeram parte de nossa rotina nesses dias. Sinceramente, agradeço a Deus pela oportunidade que nos deu, mas, principalmente, pela dádiva de podermos estar voltando para a casa.”
O GLOBO/montedo.com