“Rompemos com a Coroa, mas não rompemos com o passado!”
(Presidente Deodoro da Fonseca, em um acesso de fúria...)
Manoel Soriano Neto*
Imagem: Raiz da Vida |
Tal ideologia ancorava-se em princípios agnósticos da ciência pura, segundo o que foi chamado de “Religião da Humanidade”, com a sua “Deusa Razão”, Clotilde de Vaux, amásia de Augusto Comte. Em estreita síntese, diríamos que o Positivismo era cientificista – só era verdadeiro o que pudesse ser comprovado cientificamente, segundo ensinava Descartes; era pacifista, humanista, cosmopolita, anticlerical, propugnador da “ditadura republicana”, sendo um de seus epíginos, o ditador do Paraguai, Dr. Francia, e adepto da extinção dos Exércitos permanentes que deveriam ser substituídos pelas gendarmerias, formadas por “cidadãos-soldados”. Almejavam, quanto ao Brasil, a sua desintegração, com a criação de várias “pátrias brasileiras” (ver discurso do coronel Afonso de Carvalho, quando deputado federal, em 1946, publicado, em alguns trechos, pela magnífica edição histórica, de novembro passado, do Jornal Inconfidência, alusiva à Intentona Comunista, em que o ilustre oficial traça paralelos entra as ideologias positivista e comunista, condenando, com veemência, a ambas).
Àquela época, nossos jovens oficiais faziam questão de ser chamados de “doutores” ao invés de Alferes, Tenentes ou Capitães (a exemplo de seu ídolo, o Tenente-Coronel Benjamin Constante, que só se declinava como “Doutor Benjamin”), como se pejassem de seus postos na hierarquia militar. A politização do Exército, primeiro, a mentalidade dos oficiais positivistas, em segundo lugar, e a Revolução Federalista de 1893 e a concomitante Revolta da Armada, por final, foram as causas (aliás, concausas) alistadas por Tasso Fragoso para justificar o que chamou de “a estagnação das Forças Armadas”, nos albores da República, tudo muito pernicioso para a atividade-fim das Instituições Militares, o que veio a se refletir nos “quase fiascos de Canudos e Contestado”. E continuava o grande historiador militar, após abjurar o Positivismo, ele que fora um de seus mais ardorosos profitentes: “Por seu turno, a Revolta da Armada, com íntimas ligações com a Revolução de 1893, quebrou a coesão da Marinha e a isolou do Exército, pelo que a novel República seria presa fácil de qualquer aventureiro alienígena”.
Para bem evidenciar-se o que se passava na Escola Militar, vejamos o depoimento do líder federalista, Senador Gaspar da Silveira Martins, que da tribuna do Senado, iterativamente, condenava o “bacharelismo militar”. Disse o valoroso Chefe “maragato”, que bem conhecia a metodologia da Escola, pois um de seus filhos era aluno da mesma: “Em vez, porém, da têmpera forte que convém dar ao Exército, o que se vê em nossas Escolas Militares? A mocidade imbuída das doutrinas de Augusto Comte e Laffite e professando uma “Religião da Humanidade” que visa ao cosmopolitismo.
Pode ser que sejam boas tais doutrinas, mas não para o Soldado, que antes de tudo é feito para empunhar armas em defesa da Pátria. Alguns diretores dessas Escolas chamam, filosoficamente, os grandes Generais, de “assassinos dos povos”. Singular maneira, aliás, de encarar a questão em uma Escola de Soldados”...
A dicotomia entre oficiais ditos “práticos-tarImbeiros” e “teóricos-bacharéis” acentuou-se, sobremaneira, com a reforma de ensino promovida por Benjamin Constant, quando Ministro da Guerra. Tal reforma era voltada para uma formação militar eminentemente bacharelesca, o que assaz potencializava o divisionismo entre as duas correntes anteriormente referidas. E isso veio a se exacerbar, agudamente, quando foram publicados trabalhos de alunos positivistas, que condenavam a Guerra do Paraguai e depreciavam, acerbamente, nossos Comandantes, em especial o Duque de Caxias, teses que foram aprovadas, “summa cum laude” pelo Ministro “Doutor Benjamin”. Os alunos afirmavam que a guerra foi “um grande rolo”, de três contra um, atentatória aos princípios humanitários e pacifistas empalmados pelos seguidores da “Religião da Humanidade”. Mas a atitude do Ministro desagradou profundamente a Deodoro e Floriano, ambos, assim como Benjamin Constant, partícipes daquele conflito. “Rompemos com a Coroa, mas não rompemos com o passado!” bradou Deodoro, em um acesso de fúria, quando de uma reunião do Ministério, rasgando com violência, alguns dos ditos trabalhos. Iniciava-se uma grave crise política que redundou, posteriormente, no rompimento definitivo entre o Presidente e Benjamin Constant, que permaneceu na Pasta da Guerra por apenas quatro meses. Àquele tempo, tudo o que se relacionasse ao Império, como os seus gloriosos feitos marciais, era propositadamente esquecido e/ou depreciado pelos “bacharéis fardados”, não porém pelos militares mais idosos, a começar por Deodoro da Fonseca. Os velhos combatentes da Guerra do Paraguai eram vaiados pela mocidade militar, como nos relata Tasso Fragoso em “Advertência Preliminar”, no seu livro “A Batalha do Passo do Rosário”. Diga-se que o ínclito Marechal José Pessoa registrou em suas memórias, a estranheza que sentiu, quando iniciava como aluno a sua formação castrense, em 1903, o do centenário de nascimento do Duque de Caxias, quando sequer o augusto nome de nosso “Soldado Maior” foi lembrado em sua Escola. Aduza-se que somente em 1925 (55 anos após o término da Guerra do Paraguai!), a memória do impoluto Duque, “O Pacificador”, “Patrono da Anistia” - epíteto que lhe deu o jornalista e acadêmico Barbosa Lima Sobrinho - e Patrono do Exército, foi resgatada de um injusto anonimato, não condizente com os tantos e tamanhos serviços por ele prestados ao Brasil, na paz e na guerra. Naquele 1925, o Ministro da Guerra, General Setembrino de Carvalho, instituiu o “Dia do Soldado”, a ser comemorado a cada 25 de agosto, data do nascimento do Duque invicto.
A “ditadura republicana”, apregoada pelos prosélitos do Positivismo foi implantada pela Constituição de Júlio de Castilhos, no RS, a qual foi resguardada, por muito anos, pelo ultra-positivista Borges de Medeiros (era “um Estado dentro de um Estado”, consoante Rui Barbosa).
Em 1904, o governo fecha a Escola Militar da Praia Vermelha, em face de uma sublevação coletiva dos alunos (ainda não havia o título de cadete), contra a vacina obrigatória, ocasião em que estes saíram às ruas do Rio de Janeiro e praticaram atos vandálicos como a quebra de inúmeros lampiões.
No período em comento, a grave situação das Forças Armadas, sem um “minimum minimorum” de espírito militar, teria de ser radicalmente modificada. Esta passou a ser a grande motivação, a prioridade de número primo, após a morte de Benjamin Constant, em 1891. A reação àquele estado de coisas ocorreu no Exército e na Marinha. Quatro nomes, dentre outros, avultam, a nosso sentir, na cruzada em prol do soerguimento do moral, do espírito militar e da operacionalidade das Forças Armadas: o Barão do Rio Branco, nosso Chanceler, que propugnou “à outrance”, pelo reaparelhamento da Marinha e do Exército; Olavo Bilac, que desencadeou memorável apostolado cívico, por todo o País, em defesa do Serviço Militar Obrigatório, do qual é, aliás, o digno Patrono; o Marechal Hermes da Fonseca, Ministro da Guerra, que encetou a dita “Reforma Hermes’, cujo lema era “Rumo à Tropa!” e o Ministro Almirante Alexandrino de Alencar, que promoveu campanha semelhante na Marinha, cujo mote era “Rumo ao Mar!” E, posteriormente, no bojo dessas reformas, uma plêiade de oficiais foi estagiar na Alemanha (eram os “Jovens Turcos”); foi criada, em 1919, a “Missão Indígena” para a instrução na Escola Militar do Realengo e trazida da França uma Missão Militar que atuou no Exército, de 1920 a 1940.
Assim, saiu vitoriosa a corrente dos “tarimbeiros”, “troupiers” ou “combatentes”. Em pouco tempo, os “bacharéis fardados”, também apodados, pejorativamente, de “filhotes de Benjamin”, “desapareceram”, pois foram sistematicamente preteridos nas promoções e transferidos para longe do Rio de Janeiro, tendo a grande maioria, muitos ainda bem jovens, solicitado transferência para a Reserva.
Anos depois, outros jovens oficiais, já formados sob rígidos regulamentos, na Escola Militar do Realengo, criada em 1913, vão deflagrar um período de bernardas, na década de 1920, chamado de “Tenentismo”, pela honra do Exército e para “regenerar a Pátria”: em 1922, em 1924, com a intrusão da Revolução Libertadora, de 1923, no RS, epílogo, digamos assim, da Revolução Federalista ou “Da Degola”, de 1893/9, e, finalmente a Revolução de 1930. São os enigmas da História...
Finda essa incompleta recorrência histórica, traçada, de escantilhão, para melhor entendermos a atual conjuntura em que as Forças Armadas foram enxovalhadas por essa maligna, parcial e revanchista Comissão da Verdade, faz-se necessário que haja, como houve no passado, uma FIRME REAÇÃO do estamento militar brasileiro contra as mentiras, vilanias e calúnias contidas no relatório apresentado no dia 10 de dezembro.
"[...]pergunta que não quer calar, parafraseando o inolvidável Marechal Deodoro, ao se dirigir a Benjamin Constant: será que as FFAA romperam com o seu passado? "
A par das indignadas e justas reações dos generais Etchegoyen e Paulo Chagas, em vista dos ataques às figuras honorabilíssimas de seus genitores, além das notas dos clubes militares e dos inúmeros protestos que circulam em várias mídias, gostaria de também expressar o meu repúdio ao constatar, na nominata de eméritos Chefes militares do passado, existente naquele covarde relatório, o nome de um meu ex-comandante, o General Amadeu Martire, já falecido há muito tempo. Integrei, com muito orgulho, no 12º RI, de Belo Horizonte, então comandado pelo Cel Dióscoro do Vale, o “Destacamento Tiradentes” que partiu de Minas para o Rio de Janeiro, a fim de derrubar o governicho cripto-comunista de João Goulart. No ano seguinte, o Regimento passou a ser comandado pelo Cel Amadeu Martire, um herói da FEB, eis que na Itália, comandou, como Capitão, a 8ª Companhia do 1° RI – o Regimento Sampaio. A sua subunidade foi decisiva nos combates para a conquista de Monte Castelo. Eu tive o privilégio de ler os assentamentos desse grande chefe militar, de “excepcional coragem física e moral”, no campo de batalha. Era um comandante rígido, cumpridor ferrenho do dever, mas extremamente humano, incapaz de fazer mal a quem quer que fosse. Já tive excelentes comandantes, mas, com certeza, o Cel Martire foi o que mais marcou a minha longa vida militar, influenciando em meu comportamento e conduta, desde que eu era um jovem Tenente. Mantive contato com ele até a sua morte e fiquei estarrecido quando vi o seu honrado nome na relação dos que contribuíram, direta ou indiretamente, para com a tortura e maus tratos a prisioneiros. Não tenho nenhuma procuração da família para defender esse saudoso e valoroso Chefe; o seu filho, Comandante Martire, Capitão de Mar e Guerra, faleceu recentemente, mas tenho absoluta certeza de que os comandados desse insigne oficial-general, como eu, se sentiram revoltados ao ler o seu nome no faccioso relatório. Descanse em paz, bravo General Amadeu Martire, pois os que o conheceram, saberão vela por sua inatacável memória!
E de tudo o que antes foi expendido, resta uma pergunta que não quer calar, parafraseando o inolvidável Marechal Deodoro, ao se dirigir a Benjamin Constant: será que as FFAA romperam com o seu passado? Onde a Nota de Repúdio (independentemente do Ministério da Defesa, pois de lá nada se deve esperar), cabal demonstração de liderança, dos três comandantes, ao maldito relatório que só enxovalha, afronta e denigre as Forças e os brios militares, nas pessoas de inúmeros e excepcionais Soldados de nosso recente passado? Discordo, peremptoriamente, dos que pensam que o cômodo, omisso e obsequioso Silêncio (ora, "quem cala consente"), como se fôssemos dóceis cordeiros, é a melhor arma contra essa patifaria que atinge, em cheio e contundentemente, os bons militares. Só falta, agora, as Forças Singulares pedirem desculpas à Nação pelo período do regime militar, como desejam esses sub-intelectualoides da Comissão da Verdade (?), atrelados ideologicamente. Onde estão os Deodoros, os Setembrinos de Carvalho, os Hermes da Fonseca, os Alexandrinos de Alencar, os Brigadeiros Eduardo Gomes - Patrono de nossa FAB -, os Barões do Rio Branco, os Olavo Bilac e tantos e tantos outros?
Mas é bom que se lembre de que há um Tribunal da História (“a Mestra da Vida”, “a Mestra das Mestras”), implacável com os covardes, os omissos, os pusilânimes, os tartufos, os sabujos, os biltres e os poltrões...
“A Honra se lava com o sangue de Heróis, de Gente Brava!”
(da Canção Militar “Fibra de Heróis”)
* Coronel de Infantaria e Estado-Maior e Historiador militar.