A“Comissão da Verdade” é, de alto a baixo, mais uma farsa publicitária montada segundo o modelo comunista de sempre. Seu objetivo não é o mero “revanchismo”, como ingenuamente o pensam os militares: é habituar o povo a conformar-se com um novo padrão de justiça, no qual, a priori e sem possibilidade de discussão, um lado tem todos os direitos e o outro não tem nenhum.
Olavo de Carvalho
Se há uma lição que a História ensina, documenta e prova acima de qualquer dúvida razoável, é a seguinte:
sempre que os comunistas acusam alguém de alguma coisa, é porque
fizeram, estão fazendo ou planejam fazer logo em seguida algo de muito pior. Acobertar crimes sob afetações histriônicas de amor à justiça é, há mais de um século, imutável procedimento padrão do movimento mais assassino e mais mentiroso que já existiu no mundo.
Só para dar um exemplo incruento: o Partido dos Trabalhadores ganhou a confiança do eleitorado por sua luta feroz contra os políticos corruptos, ao mesmo tempo que ia preparando, para colocá-lo em ação tão logo chegasse
ao poder, o maior esquema de corrupção de todos os tempos, perto do qual a totalidade dos feitos de seus antecessores se reduz às proporções do roubo de um cacho de bananas numa barraca de feira.
Mas nem todos os episódios desse tipo são comédias de Terceiro Mundo. Nos anos 30 do século passado, o governo de Moscou promoveu por toda parte uma vasta e emocionante campanha contra as ambições imperialistas de Adolf Hitler, ao mesmo tempo que, por baixo do pano, as fomentava com dinheiro, assistência técnica e ajuda militar, no intuito de usar as tropas alemãs como ponta-de-lança para a ocupação soviética da Europa.
Os exemplos poderiam multiplicar-se ilimitadamente. Em todos os casos, a regra é a máxima atribuída a Lênin: "Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz." Se o acusado realmente cometeu crimes, ótimo: desviarão a atenção dos crimes maiores do acusador. Se é inocente, melhor ainda.
Durante os célebres Processos de Moscou, onde o amor ao Partido levava os réus a confessar crimes que não haviam cometido, Bertolt Brecht, ídolo literário maior do movimento comunista, proclamou: "Se eram inocentes, tanto mais mereciam ser fuzilados." Não foi mera efusão de servilismo
histriônico. A declaração obscena mostra a profunda compreensão que o dramaturgo tinha da premeditação maquiavélica por trás daquela absurdidade judicial.
Como o bem e o mal, na perspectiva marxista, não existem objetivamente e se resumem à resistência ou apoio oferecidos às ordens do Partido, a inocência do réu é tão boa quanto a culpa, caso sirva à propaganda revolucionária – mas às vezes é muito mais rentável.
Condenar o culpado dá aos comunistas o ar de justiceiros, mas condenar o inocente é impor a vontade do Partido como um decreto divino, revogando a moral vigente e colocando o povo de joelhos ante uma nova autoridade, misteriosa e incompreensível. O efeito é devastador.
Isso não se aplica somente aos Processos de Moscou. Perseguir o general Augusto Pinochet por delitos arquiconhecidos dá algum prestígio moral, mas condenar o coronel Luís Alfonso Plazas a trinta anos de prisão, por um crime que todo mundo sabe jamais ter acontecido, é uma operação de magia psicológica que destrói, junto com o inimigo, as bases culturais e morais da sua existência. Na presente "Comissão da Verdade", os crimes do acusado são reais, mas menores do que os do acusador.
A onda de terrorismo guerrilheiro na América Latina data do início dos anos 60, e já tinha um belo currículo de realizações macabras quando, em reação, os golpes militares começaram a espoucar. Computado o total das ações violentas que, partindo de Cuba, se alastraram não só por este
continente, mas pela África e pela Ásia, a resposta dos militares à agressão cubana foi quase sempre tardia e moderada, sem contar o fato de que, pelo menos no Brasil, veio desacompanhada de qualquer guerra publicitária comparável à dos comunistas.
Sob esse aspecto, a vantagem ainda está do lado dos comunistas. Os delitos dos militares chamam a atenção porque uma rede de ONGs bilionárias, secundada pela militância esquerdista que domina as redações, não permite que sejam esquecidos.
Nenhuma máquina de publicidade, no entanto, se ocupa de explorar em proveito da "direita" as vítimas produzidas pela Conferência Tricontinental de 1966, pela OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade, 1967) ou, hoje, pelo Foro de São Paulo.
Numa disputa travada com tão escandalosa desproporção de recursos, a verdade não tem a menor chance.
Na tão propalada ânsia de restaurar os fatos históricos, ninguém se lembra sequer de averiguar a participação de brasileiros nas ações criminosas empreendidas pelo governo de Fidel Castro em três continentes.
Encobrindo esse detalhe, fugindo ao cotejo dos números, trocando os efeitos pelas causas e partindo do pressuposto de que os crimes praticados a serviço de Cuba estão acima do julgamento humano - a“Comissão da Verdade” é, de alto a baixo, mais uma farsa publicitária montada segundo o modelo comunista de sempre.
Seu objetivo não é o mero “revanchismo”, como ingenuamente o pensam os militares: é habituar o povo a conformar-se com um novo padrão de justiça, no qual, a priori e sem possibilidade de discussão, um lado tem todos os direitos e o outro não tem nenhum. A única coisa estranha, nessa reencenação, é que suas vítimas ainda procedam como se esperassem, dos julgadores, alguma idoneidade e senso de equilíbrio, sentindo-se surpreendidas e chocadas quando a igualdade perante a lei lhes é negada – tanto quanto os cristãos se sentem repentinamente traídos quando o governo Dilma volta atrás no compromisso anti-abortista de campanha.
Não há nada de surpreendente em que as cobras venenosas piquem. Surpreendente é que alguém ainda se surpreenda com isso.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
Jornal do Comércio/montedo.com