Artigo: Intervenção e liberdade nas favelas
Apesar da crise, recursos existem, e as ideias não faltam
Operação militar na comunidade de Jardim Catarina, em São Gonçalo - Fabiano Rocha |
RUBEM CÉSAR FERNANDES*
RIO - A intervenção federal cria condições favoráveis para uma ampla mobilização da sociedade e dos governos. Os desafios alcançam todo o Estado e toda a sociedade, mas penso aqui nas favelas e periferias que vivem, há décadas, sob a ocupação de traficantes e milicianos capazes das maiores crueldades. Dou exemplo de ações que podem fazer diferença para as pessoas mais expostas a essas circunstâncias:
A: Os moradores sofrem com as barreiras à circulação que são impostas pelos “donos do lugar”. São trilhos na rua, quebra-molas desmedidos, trincheiras de concreto. Liberar as vias públicas é uma introdução elementar do direito de ir e vir. Tratores de esteira, nesse caso, são relevantes para a defesa de direitos.
B: A liberdade de expressão é frustrada. No interior das comunidades fala-se à boca pequena, sob a “lei do silêncio”. No exterior, os preconceitos entortam as mensagens. Importa muito que os moradores sejam ouvidos. A web ajuda, mas é preciso criatividade para ultrapassar as barreiras da comunicação. Instituições próximas às comunidades, como as igrejas e o próprio Viva Rio, abrirão espaços de escuta para denúncias de abuso, sejam de bandidos, de policiais ou de militares. Buscarão, para tanto, o suporte da Defensoria Pública. Uma intervenção que se quer constitucional há de respeitar os espaços de defesa de direitos.
C: O botijão de gás é mais caro na favela do que no asfalto. O depósito de Bonsucesso vende ao varejo por R$ 55, mas na Rocinha custa R$ 90. No Alemão paga-se R$ 80, em Antares, R$ 85, no Chapadão, R$ 75. Livres da concorrência, os donos do lugar impõem um preço arbitrário. Prova disso é que alguns cobram menos, como em Rio das Pedras, onde há concorrência e se vende o botijão por R$ 55. Já que o preço do gás resulta do arbítrio, por que não tabelar o botijão nas comunidades? Impor um limite e chamar a população para denunciar os preços abusivos? Quem sabe o Disque-Denúncia facilita a comunicação e a polícia fiscaliza? O comércio ilícito não costuma cumprir as normas de segurança para a venda de gás.
D: A cesta básica é mais cara na favela. Uma cesta familiar mensal custa ao redor de R$ 160 no comércio do ramo na Avenida Brasil, mas vale entre R$ 250 e R$ 280 nas comunidades. A economia cativa estimula o ganho excessivo. Há aí uma oportunidade para ações de mercado que ONGs especializadas, como a Cufa e o Viva Cred, poderiam explorar em benefício dos moradores.
E: Concessionárias, como a Light, propõem entrar nas comunidades com novas tecnologias e o objetivo de reduzir o preço da eletricidade em troca da regularização do serviço.
F: Algumas UPPs ganharam o apoio dos mototaxistas ao libertá-los das taxas impostas pelos “manos”, mas essa liberdade se foi, e as taxas voltaram. É uma reconquista possível.
G: Ao lado da insegurança, inenarrável, outra mazela maior das favelas é a questão fundiária. O tema vai e vem, e não se resolve. Empaca no cipoal dos cartórios. Urbanistas vêm acumulando conhecimento desde os anos 1980, com o programa “Cada família, um lote”, os esforços da Igreja e do Centro Bento Rubião, o Favela Bairro, o Estatuto da Cidade. Não será chegada a hora de cortar este nó? O alinhamento federativo está dado, o sentido de urgência não podia ser maior. É tempo de os moradores de favela conquistarem por fim o direito à propriedade do solo onde moram!
H: O grupo de maior risco está entre 15 e 24 anos de idade. Os governos e a sociedade têm, sem dúvida, capacidade de multiplicar as oportunidades de lazer, estudo, trabalho e renda para essa juventude que sofre tremenda pressão e terríveis tentações. O sistema S tem força e capilaridade para puxar esse trem. As igrejas e as ONGs também. As Forças Armadas são grandes formadoras, inclusive no campo esportivo.
Apesar da crise, recursos existem, e as ideias não faltam. Falta sim uma energia catalizadora que vença a desconfiança e o desânimo. As Forças Armadas e a sociedade civil podem cumprir este papel, cada uma a seu modo, como quem insiste em começar de novo.
* Antropólogo e fundador da ONG Viva Rio
O Globo/montedo.com