Descumprindo ordens
Movimento de sargentos evitou bombardeio ao Piratini, palácio do governo gaúcho, em 1961
Naira Hofmeister
Na tarde do dia 28 de agosto, na base aérea de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, um sub-oficial da Aeronáutica desobedeceu - pela primeira e única vez em sua vida militar - a uma ordem de superior hierárquico.
A decisão de Caetano Vasto, na época com 35 anos, enfureceu superiores e lhe deixou estagnado na carreira para sempre, entretanto impediu o ataque que poderia desencadear uma guerra civil no Brasil.
Vasto e seus companheiros - cinco sub-oficiais como ele e 28 sargentos da Força Aérea Brasileira - deveriam preparar e municiar 16 aviões que partiriam, segundo seus superiores, para um exercício de guerra em São Paulo.
- Já sabíamos pelo rádio que havia uma ordem para bombardear o Palácio Piratini, para calar Brizola e a cadeia da Legalidade. Eu disse ao comandante que ninguém iria para São Paulo e que os aviões não decolariam - lembra hoje, aos 85 anos o militar reformado.
Sub-Vasto, como era chamado na Base Aérea, tinha outros indícios para supor que a frota que estava preparando desde o dia 25, data da renúncia de Jânio Quadros, deveria atacar a sede do governo estadual, além do noticiário veiculado pela Cadeia da Legalidade.
Pensamos, se esses aviões decolarem, vão despejar essas bombas em algum lugar. E nós já sabíamos que lugar era esse
- Ninguém se arma daquele jeito para uma manobra. Além do que, naquele tempo as bombas explodiam por impacto ou por compressão, logo era um risco total aterrissar com bombas carregadas no avião - lembra.
Havia inclusive uma norma técnica determinando que a munição devia ser descarregada antes do pouso.
- Pensamos, 'se esses aviões decolarem, vão despejar essas bombas em algum lugar'. E nós já sabíamos que lugar era esse - emenda.
Por muito pouco a insubordinação não foi fatal para o grupo, que era mantido desarmado e em confinamento desde o afastamento do presidente. Assim que Caetano Vasto terminou de explicar ao comandante a negativa dos seus homens em permitir a partida dos caças, um oficial lhe colocou uma metralhadora na boca.
- Era uma Thompson 45. Ele me ameaçou dizendo que ia chumbar os dentes do sub - recorda.
Naquela fração de segundo as portas do hangar se abriram - eram os demais integrantes dos grupamentos lotados na base aérea de Canoas, que invadiram o espaço gritando "Legalidade! Legalidade!".
- Eles vieram nos dar apoio, sabiam que alguma coisa feia ia acontecer conosco, porque nós estávamos desarmados - relata Vasto, que mandava recados aos colegas de fora nos horários de almoço e janta.
Aliás, foi temendo uma reação violenta dos oficias que Caetano e seus colegas já haviam também sabotado os aviões e os armamentos de cada aeronave.
- Os aviões estavam preparados para não decolar, para não conseguirem ligar os motores. Lembramos também de esvaziar um pouquinho um dos pneus, que não correriam 50 metros - conta.
Das bombas eles sacaram as espoleta e travaram os cabides, enquanto que dos canhões substituíram os fusíveis de 50 amperes por peças de cinco.
- No primeiro disparo queimaria o fusível não funcionaria nada - regozija-se.
Brizola estava pronto para morrer
Vinte quilômetros distantes dali, no Palácio Piratini, informado sobre as ordens dos ministros militares de bombardear a sede do executivo estadual, o governador Leonel Brizola fazia um pronunciamento histórico, no qual se despedia do Rio Grande do Sul. "Não nos submeteremos a nenhum golpe! Que nos esmaguem, que nos destruam! Adeus meu Rio Grande querido", bradava pelos microfones.
- Eu me lembro que Francisco Brochado da Rocha, um jurista emérito, que depois viria a ser primeiro-ministro do Brasil (em 1962). Ele botou a mão no bolso direito do paletó, tirou a comenda e pregou na lapela. E disse: 'Eu tenho direito de morrer com a minha condecoração - narra o então líder do governo na Assembleia Legislativa e atual presidente da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (Eletrobras CGTEE), Sereno Chaise.
"Apenas cumpri minha missão"
Passados 50 anos do movimento que garantiu a posse do vice-presidente João Goulart como sucessor de Jânio Quadros - e que retardou em três anos o início da ditadura militar no Brasil - o sub-Vasto diz que "apenas cumpriu sua missão".
- Não é falsa modéstia. A expressão herói cabe em muitos lugares e às vezes é meio vaga. O risco foi grande, mas fiz o que tinha que ser feito - reflete ele.
Vasto diz que naquele momento o grupo dos sargentos ainda não sabia da adesão do IIIº Exército ao movimento legalista - anunciada também na tarde do dia 28 pelo general Machado Lopes ao então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola.
Em parte a determinação de resistir à ordem de bombardear o Piratini veio do medo de que as próprias famílias dos sargentos ficassem feridas. Por outro lado, todos reconheciam que o Marechal Lott, do Rio de Janeiro, havia redigido um manifesto a favor da Legalidade.
- O Jango tinha sido eleito, estávamos em uma democracia, existia uma Constituição à qual devíamos obedecer. Eu desobedeci a uma ordem do comando, mas o comando desobedeceu à Carta Magna. Então, pesou na minha consciência isso: o erro deles era maior - justifica Vasto.