13 de fevereiro de 2012

Greves militares: Hora de apagar o incêndio. E as chamas já vão altas


Bombeiros incendiários

Liderada por um ex-bombeiro que tentou virar político, a greve dos policiais na Bahia resulta em episódios aterradores de violência em Salvador. Por obra de outro bombeiro sindicalista, o movimento contamina o Rio e ameaça se espalhar por mais treze estados

Marcelo Sperandio e Kalleo Coura
O baiano Marco Prisco serviu como bombeiro durante quatro anos em Salvador antes de encontrar sua verdadeira vocação, a de incendiário. Durante nove dias, ele liderou a ocupação da Assembleia Legislativa de Salvador por 245 policiais militares em greve e seus familiares. Sentado em um escritório improvisado no primeiro pavimento do prédio e escoltado o tempo todo por dois PMs armados, ele dava ordens pelo telefone: determinava aos colegas que haviam ficado do lado de fora que se deslocassem de um lado para o outro com o objetivo de "cansar e irritar""" os militares do Exército que permaneciam de prontidão debaixo do sol forte, exigia suprimentos para os grevistas e ordenava ações de tumulto, como o bloqueio da BR-116, que liga o Rio à Bahia. Enquanto isso, do lado de fora, reinava o caos. Em dez dias de greve, sessenta ônibus foram assaltados em Salvador e dezenas de lojas, saqueadas e depredadas. As aulas na capital foram suspensas e até agora pouca gente se atreve a sair às ruas depois do pôr do sol. Outros episódios bem mais graves, no entanto, podem ter ocorrido enquanto Prisco e seus companheiros se amotinavam na sede do Legislativo.
Só na região metropolitana de Salvador, foram assassinadas no período 150 pessoas, o triplo do habitual. No sexto dia da greve, o governador da Bahia, Jaques Wagner, acusou policiais militares de estarem por trás dos homicídios. Ao longo da semana, foram surgindo indícios aterradores de que o governador poderia estar certo. VEJA teve acesso aos boletins de ocorrência relacionados a dezesseis dos homicídios registrados. A análise dos casos mostrou que pelo menos doze das vítimas eram moradores de rua e traziam sinais evidentes de execução. Foram abatidas a tiro enquanto dormiam nas calçadas ou vagavam pelas ruas. Em todos os doze casos, elas foram alvejadas à noite por homens encapuzados. Quatro dos crimes ocorreram numa mesma avenida, a Jorge Amado, no mesmo dia e num intervalo de minutos. Na sexta-feira passada, agentes do Comando de Operações Táticas da Polícia Federal prenderam dois soldados identificados como integrantes de um grupo de extermínio. Segundo a PF, eles teriam cometido as execuções para espalhar o medo e, com isso, fortalecer a greve criminosa comandada por Marco Prisco.
"O descontentamento na caserna tem um motivo: os militares se sentem injustiçados, já que PMs que fazem greves ilegais e espalham o terror pelas cidades terminam conseguindo reajustes e nunca são punidos."


Não foi a primeira de que o ex-bombeiro participou. Prisco ingressou na Polícia Militar em 1999, aos 30 anos, e lá trabalhou até 2001. Em julho daquele ano, a PM entrou em greve. Prisco aderiu ao movimento e se tornou um articulador importante. Por ter invadido um quartel durante a paralisação, foi expulso da corporação em 2002. Desde então, virou um sindicalista profissional. O grupo do qual ele faz parte hoje, batizado de Associação Nacional de Praças (Anaspra), vem fincando bandeiras pelo Brasil. Já tem escritórios em 24 estados e diz representar "300 000 pessoas", mas sua maior trincheira está na Região Nordeste. Entre os seus pares, o ex-bombeiro tem fama de radical. Uma conversa telefônica entre ele e o cabo Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos, líder dos bombeiros no Rio - e, como Prisco, duas vezes candidato fracassado a político -, dá conta dos métodos de trabalho do baiano. Quando a greve na Bahia tomou corpo, sindicalistas de outros estados acorreram para lá. Daciolo, como os demais visitantes, passou a disparar ligações para o seu estado para estimular levantes locais. No último dia 4, Daciolo estava no Rio pronto para liderar a deflagração da greve no estado. Às 16h54, ele recebeu um telefonema de Prisco. O baiano queria saber se a paralisação já havia sido decretada. O diálogo que se seguiu foi o seguinte:
- Aí, parou mesmo, não é? - perguntou Prisco.
- Não. Estou acionando a galera aqui para isso, segura aí, irmão. Estou levando daqui a pouquinho uma galera para uma emissora para poder acionar isso aí em rede nacional - respondeu Daciolo.
- Meu irmão, eu já declarei aqui que vocês pararam. A maior festa está aqui. Não tem como segurar mais, não.
- Está bom. Segura aí que vai acontecer.
- Não, eu já declarei aqui, já joguei nas redes sociais que o Rio parou. Então agora tem que parar mesmo. Não tem mais jeito, não.
Em 2006, o sindicalista incendiário fez campanha para Jaques Wagner, que tentava se eleger governador. Um holerite da PM, obtido por Prisco, se transformou em arma política da campanha do petista: o candidato mostrava a imagem do documento na TV, criticava os baixos soldos pagos aos PMs e prometia aumentá-los se chegasse ao poder. Wagner foi eleito com o apoio maciço dos policiais. Agora, na greve liderada por seu ex-cabo eleitoral, ao fazer o contrário do que apregoava quando era oposição, o governador foi acusado de hipocrisia. Numa leitura mais benevolente, poderia se chamar a isso também de maturidade. Entre as vantagens da alternância de poder está a de conferir moderação e responsabilidade a ex-opositores ruidosos eleitos governantes .
Jaques Wagner admitiu ter sido pego de surpresa pela greve. Informado do evento quando estava em Cuba, acompanhando a presidente Dilma Rousseff, repreendeu o seu secretário de Segurança e acusou-o de ter negligenciado o tamanho do movimento. Acionado, o Ministério da Defesa designou para a chefia das operações o comandante da 6ª Região Militar, o general de três estrelas Marco Edson Gonçalves Dias, que, durante os oito anos de mandato de Lula, foi o responsável pela sua segurança. Definido como um homem reservado e competente, o general transformou a missão na Bahia numa oportunidade para arriscar sua boa reputação. Contrariando a cartilha básica para essas situações, não só liberou o fornecimento de farta comida e água para os amotinados como chegou a autorizar a entrada de uma churrasqueira para animar a turma. Por fim, pronunciou discursos emocionados diante dos grevistas e coroou a performance com um choro incontido ao receber dos grevistas um bolo de aniversário. As lágrimas do general custaram-lhe o comando da operação.
Para a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a fagulha que deu origem à greve na Bahia foi a paralisação ocorrida no mês passado no Ceará. A concessão de reajuste de 56% para os policiais e a anistia geral e irrestrita promovida pelo governador Cid Gomes (PSB) em seguida teriam, segundo as investigações, encorajado os policiais baianos e ajudado a deflagrar movimentos em vários outros pontos do país, incluindo o Rio (até o início da noite de sexta, 59 grevistas haviam sido presos no estado. O primeiro deles foi Daciolo. Assim como o baiano Prisco, ele está detido desde quinta-feira). Cid Gomes, no entanto, não foi o primeiro a anistiar policiais militares que incorreram em crime previsto na Constituição.
O ex-presidente Lula foi quem inaugurou a prática. Em 2010, ele sancionou uma lei que agraciava com anistia policiais grevistas de oito estados, além do Distrito Federal. O pacote de perdão incluía os baianos que sitiaram Salvador em 2001 sob o comando do mesmo Marco Prisco. No ano passado, a presidente Dilma Rousseff repetiu o erro de seu antecessor - sancionou um projeto do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) anistiando os bombeiros que se aquartelaram no Rio. Durante a tramitação da proposta, o texto contemplou grevistas de outros doze estados e do Distrito Federal. Na semana passada, porém, a presidente declarou que não haverá anistia no caso dos grevistas da Bahia.
Além de afrontar a Constituição e pôr em risco a segurança da população, o movimento grevista da PM embute outra ameaça - dessa vez, de natureza fiscal. Os policiais não pleiteiam apenas aumento salarial. Exigem também que a Câmara Federal aprove a PEC 300, uma proposta de emenda constitucional que é uma autêntica bomba-relógio para os estados. Ela prevê a criação de um piso nacional para todos os bombeiros, policiais militares e policiais civis do país - cerca de 440 000 pessoas. Em 2010, essa PEC foi posta em votação de primeiro turno na Câmara. Como prova de que poucos parlamentares se debruçam com atenção sobre o que irão votar - e confirmando a tese de que nenhum deputado gosta de se opor a uma categoria organizada, por medo de perder votos no futuro -, a PEC foi aprovada por unânimes 349 votos. Posteriormente, aprovou-se um acordo político por meio do qual o piso seria fixado em 3 500 reais. Isso significa que, além do aumento no salário dos soldados, a aprovação da PEC implicará o reajuste no soldo de toda a hierarquia superior já que cabos, sargentos e tenentes não podem ganhar menos que os subordinados. A maioria dos estados simplesmente não tem dinheiro para bancar esses reajustes em cascata.
Ao constatar o óbvio - que as contas não fechariam -, os deputados vieram com uma emenda pior do que o soneto: sugeriram que a União formasse um fundo emergencial para ajudar os estados a suportar os aumentos - sem dizer de onde viria o dinheiro para isso. Com fundo a ou sem fundo, o governo de Pernambuco preparou uma estimativa do aumento de despesas que terá caso a proposta seja aprovada: gastos extras de 1 bilhão de reais por ano, considerando só PM e Corpo de Bombeiros. Em Santa Catarina, a situação seria ainda mais dramática, com a elevação da folha salarial em 2,3 bilhões de reais anuais. Em todas as unidades da federação, o cenário se repete. Mas os o estados não fabricam dinheiro. "A consequência dramática da PEC 300 seria um conflito direto com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita os gastos dos executivos estaduais", diz o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, "A proposta também é indutora de uma generalização perigosa: criação de pisos nacionais para todas as categorias. Imagine se o pessoal da Saúde também quiser criar um piso semelhante. Quem vai conseguir pagar?", questiona o economista.
Do ponto de vista dos ganhos para a sociedade, não há nenhuma garantia de que a elevação salarial dos policiais reverteria em uma melhora na segurança pública. "Desempenho não melhora só com aumento de salário ou do efetivo de policiais", diz o coronel José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança. "É preciso investir na área de inteligência, em tecnologia da informação e no treinamento de profissionais". afirma. Ele cita como exemplo o Distrito Federal, que tem o piso da Polícia Militar mais alto do país. Em Brasília, um soldado ingressa na corporação recebendo 4056 reais por mês. Apesar da remuneração alta, os resultados estão longe de ser uma maravilha. O índice de homicídios, por exemplo, está na casa de 34 a cada 100 000 habitantes maior do que em capitais que pagam menos a seus soldados, como Rio de Janeiro, Campo Grande ou Natal.
Saber como investir bem os recursos é mais importante do que multiplicá-los. O governo do Ceará, por exemplo, não acerta a mão. De 2000 a 2010, o índice de homicídios em Fortaleza saltou de 28 para 46 a cada 100 000 habitantes. Nesse mesmo período, o Executivo cearense notabilizou-se por gastar 64 milhões de reais para comprar 428 viaturas modelo Toyota Hilux SW4 para serem usadas no policiamento da orla da capital. No estado de São Paulo, ocorreu o inverso: a taxa de homicídios despencou de 35, em 1999, para 10 por 100 000, no ano passado. O efetivo da PM aumentou pouco no período, 6%, mas o investimento em gestão foi brutal.
Se a nivelação nacional dos salários dos policiais não faz sentido pelas óbvias diferenças regionais, tampouco faz sentido que o piso dos PMs de Porto Alegre, por exemplo, a décima capital do país, seja um dos mais baixos do Brasil. Uma comparação internacional, no entanto, ajuda a dar à questão salarial dos policiais o seu tamanho devido. A polícia de Nova York tornou-se um paradigma de qualidade: nos últimos vinte anos, fez o índice de criminalidade na cidade recuar 80%. Pois bem. Lá, os oficiais em início de carreira ganham o equivalente a 6 400 reais por mês. É quase o triplo do piso médio pago a um PM no Brasil (2 200 reais), mas é preciso adequar os salários à realidade dos países. O salário médio pago a um trabalhador nos Estados Unidos equivale a 6 300 reais. Ou seja, os policiais de Nova York ganham apenas 1 % mais que a média nacional. No Brasil, o salário médio é de 1 650 reais. O piso médio dos PMs, portanto, está 30% acima da média. "Com base nesses números, não se pode dizer que os policiais sejam mal remunerados no Brasil", diz o economista Marcelo Neri, especialista em renda da Fundação Getúlio Vargas.
O sucesso da condução da crise na Bahia e, agora, no Rio é fulcral para o Planalto. Os organismos de inteligência já informaram à Presidência que qualquer recuo do governo na crise abrirá precedentes perigosos em pelo menos seis estados. Estão marcadas para esta semana assembleias de policiais em dez unidades da federação. O agravante é que já chegaram ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência relatos de insatisfação vindos das Forças Armadas, que começam a vislumbrar a possibilidade de iniciar o seu próprio movimento grevista. O descontentamento na caserna tem um motivo: os militares se sentem injustiçados, já que PMs que fazem greves ilegais e espalham o terror pelas cidades terminam conseguindo reajustes e nunca são punidos. Os informes que chegam ao Planalto dão conta de que as associações de mulheres de militares planejam encampar uma onda de manifestações - já que os membros das Forças Armadas são proibidos de realizar greves. Os policiais também são, claro. Mas as seguidas anistias promovidas por governos lenientes parecem tê-los feito se esquecer disso. Agora, é hora de apagar o incêndio. E as chamas já vão altas.
Com reportagem de André Eler, Luis Guilherme Barrucho, Laura Diniz, Carolina Rangel, Julia Carvalho e Rafael Foltram
Revista Veja - 13/02/2012

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