Nordestinos que trabalharam na Amazônia há 70 anos ainda lutam por direitos
Edson Luiz
Renata Mariz
Em busca das honras e compensações prometidas quase sete décadas atrás, um grupo de 4 mil pessoas com mais de 80 anos poderá, finalmente, usufruir do que o governo se comprometeu a oferecer naquela época: fartura na Amazônia. Eles são os soldados da borracha, que, a partir de 1942, deixaram o Nordeste para cortar seringa na região, como parte do acordo fechado por Getúlio Vargas de fornecer a matéria-prima às forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. No lugar de riqueza e progresso, os seringueiros “alistados” encontraram fome, escravidão, doenças e miséria. Hoje, exigem do Estado brasileiro uma indenização individual de R$ 763,8 mil, como reparação moral e material por tudo que passaram. A expectativa é de que a decisão da Justiça saia em breve. Embora a Advocacia-Geral da União (AGU) já tenha apresentado suas contestações, refutando o pedido, documentos históricos obtidos pelo Correio revelam que as autoridades esconderam dos recrutados as condições precárias tanto da viagem quanto da vida que os esperava na floresta. A partir de hoje, uma série de reportagens mostrará também o improviso que marcou todo o processo capitaneado pelo governo.
Valia tudo para honrar o compromisso de fornecer 35 mil toneladas anuais de borracha aos Estados Unidos. Criar uma propaganda enganosa de recrutamento, confabular com autoridades locais, provocar o engajamento da Igreja Católica, deixar trabalhadores sem água ou comida depois de alistados. A reparação que os nordestinos julgam merecer pode vir de decisão da 2ª Vara Federal em Rondônia, que analisa, desde 2009, o processo movido pelo Sindicato dos Soldados da Borracha e Seringueiros do estado. A instituição representa atualmente 4 mil pessoas, sobreviventes de um exército maior, de 50 mil homens mobilizados à época. O chamado do governo os colocava em posição de destaque. “Ao nordestino, cabe uma tarefa tão importante como a do manejo das metralhadoras (…) impõe-se-lhe o dever de lutar nas terras abençoadas da Amazônia, extraindo borracha, produto indispensável para a vitória, como a bala e o fuzil”, dizia a propaganda.
A campanha efusiva de recrutamento divergia muito da postura do Brasil poucos meses antes, ainda indeciso sobre a conveniência de enviar homens para lutar nos fronts europeus. Só depois que submarinos nazistas atacaram os navios Buarque, Olinda e Cabedelo em águas brasileiras, matando 55 pessoas, foi que o governo saiu do clima de flerte com a Alemanha de Adolf Hitler e escolheu ficar do lado das tropas aliadas na Segunda Guerra. Também pesou na decisão a ajuda econômica prometida pelos Estados Unidos. A partir de 1942, milhares de soldados da borracha começaram a ser deslocados para a ainda desconhecida floresta. Dois anos depois, 25 mil pracinhas partiram para a Europa sob as bênçãos do governo, que em troca receberia dinheiro para construir, entre outras obras, a Companhia Siderúrgica Nacional. Alheio a tanta negociação, Adelmo Fernandes Freitas se alistou, aos 12 anos, com o pai.
Ele queria ser soldado da borracha, apesar de não saber como era a mata. Conhecia apenas a seca e a miséria do Nordeste. Aos 80 anos, Adelmo tem uma recordação clara da chegada ao Acre, em 1943, na companhia do pai, Manuel Pedro Fernandes, e de outros sertanejos. “Aquilo era uma vida de bicho”, define o ex-seringueiro, que passou 15 anos dentro da floresta. Ainda menino, ele sonhava ganhar muito dinheiro no seringal. A esperança de ter uma vida melhor, porém, durou só o tempo do trajeto entre o seu Ceará e as terras acrianas, cerca de três meses. Na chegada, já foi possível prever que o plano de enriquecer naquele mundo tão diferente de onde foi criado não passava de ilusão.
O trabalho era incessante. “Seis dias para cortar a seringa e, no sábado, a gente defumava a borracha”, lembra Adelmo. Alguns poucos domingos de folga tinham de ser aproveitados para garantir a sobrevivência nos dias seguintes. “A gente aproveitava o dia para recolher cocos e juntar cavaco para fazer fogo”, conta o soldado da borracha. Medo da floresta, ele garante que não tinha. O pavor vinha das doenças que mataram vários de seus companheiros. Uma delas é a malária, da qual foi vítima por várias vezes. “Até perdi as contas”, observa o senhor. Na falta de um tratamento e diante das condições precárias de vida, ele fazia qualquer coisa para tentar se livrar do mal-estar e das dores provocadas pela peste amazônica. “No barracão, não tinha uma pílula sequer. Quantas vezes tive que ir para o igarapé para aliviar a febre”, recorda o ex-seringueiro.
Direitos esquecidos
“Os soldados da borracha foram vítimas de violação dos direitos humanos e viveram em regime de escravidão”, sustenta o advogado Irlan Rogério Erasmo da Silva, que defende a categoria na ação judicial. “Por isso, o pedido de indenização é por dano moral. A outra alegação é o dano material, já que o governo dos Estados Unidos mandou dinheiro para o Brasil pagar os trabalhadores que seguiram para a Amazônia, mas os seringalistas, donos do seringais e também conhecidos por patrões, ficaram com os recursos”, explica Irlan.
Em sua defesa, a AGU argumentará que os fatos ocorreram na década de 1940, quando vigente a Constituição de 1937, e em período de guerra. Portanto, de acordo com a contestação, o pedido dos soldados da borracha não podem ser atendidos, já que se baseia na Constituição atual, de 1988. A União salienta ainda que os efeitos patrimoniais reclamados por meio da ação são sujeitos à prescrição e que não existe, nos autos em questão, provas dos prejuízos sofridos pelo autor, requisitos necessários em demandas dessa natureza.