25 de setembro de 2016

Queda do voo 1907 da Gol: dez anos depois, brigadeiro relembra a operação de resgate dos corpos

Comandante de resgate dos corpos relembra cenas que diz tentar esquecer
Em 2006, o brigadeiro da Aeronáutica foi escalado para comandar uma operação de resgate de sobreviventes de um acidente aéreo no meio da Amazônia. A gravidade da queda do voo 1907 da Gol, no entanto, logo deixou claro que aquela não seria uma busca por sobreviventes, mas por corpos das vítimas. Nesta semana, as memórias de Jorge Kersul Filho serão lançadas na forma de um livro, escrito por sua irmã, Maria Tereza Kersul. A obra tem como título o lema militar: "Ninguém ficou para trás".
A seguir, o depoimento dele, dado no Ministério da Defesa, em Brasília:
Depoimento a
FABRÍCIO LOBEL
DE SÃO PAULO
Enquanto quase ninguém na Força Aérea gostava de ir para a [base da] serra do Cachimbo, no meio da Amazônia, eu adorava. Sempre gostei. É lá onde a Força Aérea testa as munições de seus caças.
A região é um deserto verde. E eu adorava o silêncio, a calma da floresta. Hoje penso se, ao longo da minha vida, eu não estava de alguma forma sendo preparado para estar naquela área anos depois, para ajudar no resgate dos corpos das vítimas do acidente.
Eram 17h30 de uma sexta-feira e eu tinha acabado de chegar em casa, depois do expediente no comando da Aeronáutica em Brasília. Tinha tirado meu uniforme e estava recebendo amigos em casa. A Aeronáutica me telefonou pedindo para que eu retornasse à base. Eu achei que pudesse ser algum tipo de trote, de brincadeira. Mas assim que cheguei no comando da Força Aérea, percebi que havia ocorrido algo sério.
Uma reunião de emergência havia sido marcada e se alongaria até o início da madrugada. Tínhamos apenas a informação de um Boeing com 154 passageiros desaparecido no meio da Amazônia, entre Mato Grosso e Pará.
Naquela hora, eu era o oficial mais disponível para viajar e comandar a operação de buscas por sobreviventes. Meu foco era propiciar que as equipes tivessem uma estrutura necessária para a operação. Não poderia faltar equipamentos, alimentação, local para descanso, banho, itens de proteção.
Foram menos de quatro horas de sono. Às 6h da manhã seguinte, eu já estava embarcando com destino à serra do Cachimbo. Enquanto eu viajava, duas aeronaves de busca sobrevoavam a área em que o Boeing parou de emitir sinais ao radar. Nelas, estavam os homens do Para-SAR, um grupamento [militar] de buscas.
Logo, uma das aeronaves avistou a fuselagem do Boeing. Só avistou porque alguém lá em cima quis. Pois a mata não tinha nenhum sinal de destruição causada pela queda do avião.
Se o piloto tivesse tentado um pouso forçado, deixaria um rastro de árvores caídas. Não foi o caso. Como o avião se desintegrou no ar, as peças choveram na mata. E as fuselagens ficaram escondidas sob a copa de árvores com cerca de 40 metros de altura. Com a ajuda de um cabo de aço preso a um helicóptero, os homens desceram até o local onde estavam os destroços. Assim que chegaram no solo, encontraram dois corpos, um deles sobre o dorso da aeronave. Mas onde estavam os outros 152 passageiros?
Os militares assoviavam no meio da mata, gritavam pelo nome das vítimas e nada. Fomos para buscar sobreviventes. Montamos um hospital de campanha na fazenda Jarinã, mais próxima ao acidente. Tudo para atender os sobreviventes. E nada. Em vez disso, ao longo do dia encontramos mais corpos.
Na manhã seguinte, estava no primeiro helicóptero que pousou na clareira aberta ao lado dos destroços. Estava sendo cobrado por informações. Cobrado pela Aeronáutica, pelas famílias, pela imprensa. Então, eu tinha que ver aquela cena.
Por mais que você tente imaginar, você não consegue. Nenhum treinamento militar chega perto daquilo. Chegando lá, você se depara com uma floresta virgem, hostil, odores diversos, coisas espalhadas pelo chão, calça de uma das vítimas pendurada na árvore. Sacos com fragmentos dos corpos. Militares tendo de se alimentar e dormir no mesmo local em que estavam os destroços.
Não me cabia buscar vítimas. Não tenho nem preparo para isso. Por isso, eu fui poupado de ver muitas coisas. Mas os homens que estiveram na mata viram as cenas que ninguém quer ver. Naquela tarde, retornei à fazenda Jarinã e anunciei para a imprensa: "A situação é muito pior do que qualquer um de nós possa imaginar". Declarei que não havia sobreviventes.
Aí começou a fase mais difícil, o resgate dos corpos. Foram 40 dias de busca até encontrarmos os restos mortais de todos os passageiros.
O último foi o do Marcelo Paixão, que estava na poltrona 17-Charlie, ou 17-C. Esse número eu não esqueço. Todo dia eu olhava para o mapa de assentos do avião e sabia que ainda faltava encontrar o Marcelo. É como um lema militar, "ninguém fica para trás". E não ficou.
Ao longo do resgate dos corpos, pedi que os homens recolhessem pertences das vítimas que estivessem próximos a elas, para entregarmos às famílias. Eu fui aconselhado a não recolher os itens. Mas achei que as famílias iriam querer ter algum bem, como recordação.
Não posso dizer que me arrependo de ter tomado essa decisão. Se fosse um parente, gostaria de ter uma foto, uma carteira do meu familiar. Mas, quase um ano depois da operação, fomos acusados de sumirmos com parte dos itens. Fomos acusados de termos feito "pilhagem" das vítimas. Então digo que, se soubesse das consequências e das acusações, não tomaria aquela decisão. Teria deixado tudo na mata.
Fui cobrado quanto a isso nas CPIs que foram abertas no Congresso sobre o acidente. Recolher os pertences das vítimas e entregá-los às famílias não era nossa responsabilidade e acabou sendo motivo para acusar os 800 homens que se envolveram na operação.
Mas me lembro com carinho da mulher de uma das vítimas, que no meio da CPI, me abraçou e me agradeceu por eu ter trazido o corpo do marido dela de volta para o sepultamento. São cicatrizes que, com o tempo, eu quero tentar esquecer.

UOL/montedo.com

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