Com 34 anos de polícia, o delegado do 16º DP, Wilder Brito, contou ao Tribuna do Ceará os bastidores do caso mais exaustivo de sua carreira
No dia 11 novembro de 2014, um crime bárbaro chocou Fortaleza. Uma mulher, Cristiane Coelho, 41 anos, acusava o marido, o subtenente do Exército Francilewdo Bezerra, 45, de tê-la espancado e dopado para matar envenenado um dos filhos do casal, o menino autista Lewdo Bezerra, de 9 anos. Após cinco meses de investigações, o laudo pericial constatou que Cristiane envenenou e matou com chumbinho o filho e tentou o mesmo com o ex-marido, que sobreviveu e permaneceu em coma por mais de 10 dias.
Com 34 anos de polícia, o delegado do 16º Distrito Policial, Wilder Brito, esteve à frente do inquérito e contou com exclusividade para o Tribuna do Ceará os bastidores de um dos casos mais polêmicos de sua carreira, e que marcou a história da polícia cearense.
O delegado tomou conhecimento do fato pela mídia. Quando viu o endereço, no bairro Dias Macedo, onde fica o 16º DP, já sabia que o caso iria para sua área. “No dia seguinte chegou o inquérito na minha mão, e a partir daí a gente começou todo o trabalho investigativo”.
Início da investigação: primeiros indícios
“Quando o material chegou em nossas mãos, percebemos que havia um problema a ser questionado, que foi o fato de uma postagem ter sido feita no Facebook do subtenente enquanto ele estava em coma. Como isso era possível?” A primeira indagação do delegado passou a atribuir a mesma suspeita de Francilewdo a Cristiane.
“Fui no local, na rua, investiguei a pessoa que havia vendido o chumbinho, porque a suspeita era de envenenamento. Nas crises, a criança se batia na parede e os vizinhos escutavam, naquele dia o silêncio foi sepulcral”. Após ouvir as primeiras testemunhas e já em posse das primeiras informações, Wilder, sua equipe – composta de quatro policiais – e os peritos partiram para o endereço do crime.
Perícias e vistoria na casa
Após a acareação, foi feita a primeira reconstituição do crime na casa. “Quando fiz a primeira visita, coloquei a casa à disposição da polícia, ninguém podia mais entrar nem mexer porque era de interesse da investigação. Eu queria encontrar o chumbinho na casa. A mulher que vendeu a Cristiane negou, mas descobrimos que essa mulher adquiriu o produto de um carro que vendia remédio para insetos no bairro. Ele até deixou de vender depois disso. Conseguimos achar no esgoto e na pia”.
filho-subtenente-alteradoCrime chocou a população de Fortaleza. (FOTO: Divulgação)
Inúmeras perícias foram solicitadas pelo delegado para dar maior peso as investigações. “Passamos a laudar as nossas desconfianças. Nosso Direito é muito formalista, então quando eu tinha indícios precisava laudá-los para deixar o material provado. Dessa forma, quando fosse à Justiça, seria difícil de contestar”.
Quebra do sigilo
“Quebramos da forma mais inteligente possível, não precisamos ir à Justiça, as pessoas envolvidas nos colocaram à disposição. Ela [Cristiane] trouxe o celular do esposo, que estava com ela, e mandou que nós verificássemos”. No aparelho foi constatado que centenas de arquivos haviam sido deletados. Vários deles conseguiram ser recuperados com a solicitação de quebra do sigilo, averiguada pela perícia.
“À proporção que iam surgindo informações desse material, novas pericias iam sendo feitas. Ela nos deu a senha do celular, essa foi a primeira passagem”. Wilder afirma que a polícia fez o mesmo que a operação Lava Jato de Brasília: averiguou os dados dos celulares, e reconstituiu a chave para recuperar os dados do aparelho.
De vítima a suspeita
“Quando a chamamos para depor, fiz um pergunta clássica: perguntei se eles tinham a senha um do outro. Ela disse que não, e que nem sabia”. Porém, a acusada havia falado pouco tempo antes que tinha deletado arquivos do Facebook do esposo. “É impossível se deletar arquivos de um perfil se você não tem a senha. Ela não teve tempo de ensaiar a mentira”.
A acusada mostrou ao delegado fotos de supostas lesões que haviam sido feitas pelo marido. “Até então ela era vítima, eu não podia apreender seu celular para investigar mais a fundo, então fotografei com o meu celular essas imagens que ela mostrou”.
No segundo depoimento, Cristiane foi à delegacia já acompanhada do advogado, Paulo Quezado. “Perguntei se ela faria alguma objeção em me dar o celular e a senha para um periciamento, ela afirmou não haver problemas e me autorizou a quebrar o próprio sigilo dela. Ela se sentia muito confiante”.
O delegado comenta que a ré teve muito tempo para maturar, planejar e executar o “crime perfeito” , e achou que não fosse deixar rastros, mas deixou.
“Ela subestimou e zombou da inteligência de um aparato policial de estado completo”. A equipe pequena, Borges, Elias, Duarte e Eliane ajudavam o tempo inteiro. “Eles sempre foram muito dedicados a todo o momento e, em pouco tempo, começaram a entender o que eu queria”.
“Fiz uma intercepção telefônica dos celulares do casal e dos envolvidos. Ela [Cristiane] segurou muito o dela porque queria ganhar tempo. Eu sabia que ela apagaria os arquivos que a comprometessem e colocaria outros para me confundir. Dito e feito”.
O delegado havia gravado os diálogos que Cristiane afirmava ter tido com Francilewdo. A ré havia montado a história em cima desse mote, que justificaria o suposto espancamento, morte do filho e sua tentativa de suicídio. “Fui montando o quebra-cabeças a partir daí”.
“Ela [Cristiane] nunca confiou em mim. Várias vezes foi grosseira e mal-educada, isso quando ainda era ‘vítima’. Tive que que adverti-la mais de uma vez, o advogado dela fez o mesmo”. Cristiane sempre tinha uma resposta para tudo que era perguntado por Wilder, porém, passou a se irritar com as perguntas fora do contexto. Cada agressão era notada como defesa. “Ela não sabia onde eu queria chegar, comecei a descobrir sua mentira”.
A equipe passou a investigar as redes sociais da acusada. “Me fiz de amigo dela no Facebook, inclusive no perfil falso que ela mantinha. Tudo às claras, com meu nome. Afinal, eu tinha que manter essa situação dela como vitima por uma série de situações jurídicas, eu tinha a hora certa de agir. O que importava na perícia era identificar toxicologicamente que a criança morreu envenenada por chumbinho e que o pai também havia sido envenenado”.
Tudo foi identificado e provado com os laudos periciais e prontuário médico do Hospital Militar, que forneceu de forma espontânea à polícia um prontuário de 470 páginas do subtenente. “Se ele foi envenenado e o filho também com a mesma substância, alguém tinha que ter ministrado esse chumbinho”.
O laudo do vinho foi o último. “Ninguém falou disso, o trunfo maior. Ele chegou pronto e comprovou que Cristiane não havia tomado medicamentos com vinho, segundo ela afirmou ter sido forçada. O organismo dela deu zero naquele dia para medicação”. No dia do fato, Cristiane foi submetida a exame toxicológico que demorou muito tempo para sair, quase no final do inquérito.
“Isso era o que eu precisava naquele momento. Porque tudo que a gente tinha se colocado a provar estava acontecendo. A minha tese prevaleceu. Ela quem havia colocado Rivotril para o marido tomar dentro do vinho, com ele já dormente, teve oportunidade de envenená-lo”.
Perfil sociopata
“Nada dela eu me admirei. Sou professor de criminologia na Academia de Polícia Civil do Estado e constatei nela o perfil de uma sociopata, mas o que me chamou atenção nisso tudo foi a capacidade que ela teve de criar e elaborar esse plano. Vi também que ela já traía o marido há muito tempo, e não era com uma só pessoa. Ela trocava diversas fotos nuas via WhatsApp com eles”. O delegado preferiu não evidenciar por se tratar da vida pessoal da ré.
“O que me chocou foi ela ter combinado com uma pessoa para vazar as fotos nuas, só para comprometer o delegado. Dessa forma, ela pretendia que eu não tivesse mais poder de continuar as investigações. Aí vi que Cristiane era capaz de tudo”.
Segundo Wilder, Cristiane irá sustentar a mentira sobre a história até o fim da vida. “Ela nunca vai confessar porque é uma característica dos sociopatas. Mesmo que ela seja condenada, nunca vai contar, vai cumprir pena e tudo. Se ela for mais inteligente, pode até escrever um livro dessa história contando a versão dela”.
Investigação exaustiva
“Em casa, às vezes eu dormia olhando pro computador procurando descobrir as verdades dessa história. Foi um período de sofrimento, eu já estava cansado; não podia parar o trabalho da delegacia pela complexidade desse caso. Quem mais me ajudava era o trabalho de dedicação da minha equipe e dos peritos”.
Wilder Brito diz ter sofrido piadas dos colegas, que afirmavam que o delegado só estava querendo aparecer na mídia. “Quando não era isso, perguntavam quando eu terminaria ‘esse famigerado caso’. Sou muito reto no meu trabalho, não vendo imagem, não fico atuando eu falo verdades e elas incomodam as pessoas, é isso que acontece”.
Questionado sobre as acusações da defesa de que haveriam falhas no inquérito, o delegado afirma que isso é a falta de argumentos. “A defesa não tem o que dizer dessa investigação, ela esta tentando ganhar tempo. Claro que ela está no direito de fazer a crítica, mas não tem fundamento, está só tentando descaracterizar a investigação”.
Trabalho consagrado
Wilder se aprofundou e fez um relatório de 119 páginas provando que Cristiane havia matado o filho e envenenado o marido. Em abril desse ano ela foi acusada de homicídio triplamente qualificado e entregou-se à Polícia Civil um mês depois. A ré foi a júri e espera por julgamento.
Para o delegado, o que deixa uma equipe de polícia satisfeita em um caso é consagrar um trabalho. “É fazer a investigação; relatar o inquérito; indiciar; o Ministério Público denunciar e ir para a instrução criminal, onde tudo é provado”.
Passado esse processo, o acusado é pronunciado e vai a júri. “Se ela for condenada, melhor ainda; se ela for absolvida, nós fizemos a nossa parte”. Segundo Wilder Brito, a investigação do caso engrandeceu o nome da Polícia Judiciária do Estado.
“Isso vai ficar na história não sou eu que digo, são vocês, a mídia. Minha grande virtude foi ter presidido a investigação, ela mostrou que nada se faz sozinho: um delegado sem polícia não é nada e sem perícia a polícia judiciária não faz nada. Não há crime perfeito, e sim investigações mal feitas”.
tribunadoceará/montedo.com