HÁ 50 ANOS, OS PRACINHAS GAÚCHOS QUE INTEGRARAM A FORÇA DE PAZ DA GUERRA DOS SEIS DIAS, ENTRE ISRAEL E SEUS VIZINHOS ÁRABES, VOLTAVAM PARA CASA
Faz 50 anos, mas eles contam como se recém estivessem voltando. Lá estavam – e de certa forma ainda estão e jamais deixarão de estar –, olhando de um lado a paisagem verdejante de Israel e, de outro, o deserto do Egito.
Os pracinhas brasileiros do 20º contingente das forças de paz que a Organização das Nações Unidas (ONU) despacharam para ajudar na contenção do conflito entre países árabes e o Estado judeu viveram, intensamente, momentos extremos, comparáveis aos dos grandes filmes de guerra. Depois de desempenhar a missão pacificadora em meio ao confronto bélico no deserto, no dia 12 de junho de 1967 eles deram início à viagem de retorno a Porto Alegre. Chegaram – como heróis – em 1º de agosto. No próximo sábado, dia 5, rememorarão, com um almoço no Círculo Militar, o cinquentenário dessa tensa aventura.
Duas cenas são especialmente marcantes. A primeira ocorreu durante os dias 20 e 22 de maio de 1967. As forças egípcias se aboletaram em uma vala, a quatro metros de distância, separadas apenas por um arame.
Cinco blindados estacionaram e, na superfície, eram visíveis apenas as pontas das metralhadoras. Os soldados, cabos e oficiais brasileiros eram usados como escudo humano pelos egípcios diante do iminente começo da guerra entre países árabes e Israel, o conflito que duraria seis dias naquele ano. Caso começasse o enfrentamento, estariam mortos. Para alívio do pelotão de 40 militares, em sua grande maioria gaúchos, nada aconteceu.
A segunda cena se deu às 8h45min de 5 de junho de 1967, quando viram se formar um cogumelo de fumaça. Gritos, correria, mortes às dezenas, em curto espaço de tempo. Era, enfim, a Guerra dos Seis Dias, que terminou com o redesenho das fronteiras entre Israel e os países vizinhos, deixando para trás o mapa que, hoje, é visto por muitos como a solução para o conflito.
O Brasil integrava a Força de Emergência das Nações Unidas (Unef, sigla do inglês United Nations Emergency Force) no Oriente Médio, com 427 homens, entre soldados, cabos, sargentos e oficiais. Com Canadá, Colômbia, Dinamarca, Finlândia, Índia, Indonésia, Iugoslávia, Noruega e Suécia, o grupo tinha a missão de pôr ordem na tensão provocada pela Guerra de Suez, em 1956. Era o 20º e último contingente brasileiro, que acabou sendo uma força de paz em plena zona de guerra. A tradição brasileira nessas ocasiões é a de atuar em crises internas, como a atual no Haiti. Naquela crise no Oriente Médio, o país já havia enviado 6,3 mil homens entre 1957 e 1967. O quinto, o 13º e o 20º contingentes foram integrados por gaúchos.
Os pracinhas do 20º contingente serviam na cidade de Rafah (Faixa de Gaza), em 1967 – lá onde eclodiu o conflito entre Israel e Egito.
O presidente egípcio Gamal Abdel Nasser ordenou que as forças da ONU batessem em retirada, e o Conselho de Segurança da ONU decidiu pela saída. Os canadenses partiram em apenas seis horas. Todos se foram. Os brasileiros ficaram. O governo militar (1964-85), na ocasião sob a presidência de Castelo Branco, sequer discutiu essa opção.
– Era ditadura. Havia intransigência. Os Estados Unidos prometiam que não haveria guerra. E ficamos – conta Wilton Melo Garcia, soldado na ocasião, hoje com 70 anos.
O ex-cabo Pedro Paulo Andrade de Araújo, também com 70 anos, elaborou um diário num pequeno caderno de capa azul em que relata a guerra, narrando com especial emoção o começo do enfrentamento bélico, que os pegou de surpresa: “Sem que ninguém esperasse, passou um avião em rasante e, às 10h, iniciavam-se os tiros dos canhões. Havia se iniciado a guerra tão temida”. Pela percepção do cabo Andrade, “as balas pareciam chuva”, e eles participavam de “uma guerra real sem participar da mesma”. O ex-soldado Juarez Corrêa, 70, se diz orgulhoso do passado de “boina azul”:
– Honramos no Exterior o nome do Brasil e dos brasileiros com o risco da própria vida ao termos servido de escudo humano. Todos temos nossas histórias relacionadas àquele período. Temos uma ligação muito forte entre nós. Somos como irmãos.
O sentimento misturava angústia, frustração e impotência. Restaram sequelas.
Eles veem hoje nos telejornais a troca de disparos dos dois lados de uma região que conhecem bem e lembram-se de quando, sentados sobre espinhos em frente a um hospital da ONU, observavam aquilo que lhes parecia um filme real. O Egito anunciou que atacaria Israel em um comunicado, em 4 de junho, e Israel se antecipou, partindo para o ataque no dia seguinte. As tropas israelenses vieram de três pontos: do Mar Mediterrâneo, da divisa entre Israel e Gaza e da fronteira com o Egito. E os brasileiros no meio.
– Posso assegurar: o que vimos lá é bem parecido com o que vemos nos filmes. Estávamos no meio de tudo. Dezenas de pessoas morrendo na nossa frente. Fogo cruzado e muito pesado. Certa vez, eu estava em uma cerimônia militar em 2010, em Canoas, e três F5 deram um rasante. Nos meus pensamentos, eu voltei para o Egito. Tudo aquilo está muito presente para nós até hoje – conta Jaudir Washington, 69 anos.
É um trauma ainda presente. Ele prossegue:
– É impossível você esquecer das centenas de mortes que viu na sua frente. Foram centenas, não exagero quando digo isso. Era morte a todo instante. Cheguei a perder algumas noções da realidade. Vivíamos apavorados, angustiados. Aquilo nos afetou, e não tem como ser diferente. Perdi até a noção do tempo, por exemplo.
José Carlos Lemos, 69, lembra que o que dividia Israel e Egito, no local onde eles estavam, era uma vala de 50 centímetros de largura e um metro de profundidade.
Carlos Ferrari, 70, também soldado à época, diz que nunca deixou de fazer psicoterapia e relata detalhes dos enfrentamentos:
– Vimos o ataque cirúrgico de Israel. Já os árabes vinham às vezes correndo até com faca em punho, porque acreditavam que, se morressem, iriam para um céu especial, para um paraíso. Por isso, eram mais violentos. Israel começou o ataque com aviões e pegou toda a aviação árabe no chão. Depois, a artilharia passou a atacar, e vieram os tanques. Nós vimos tudo isso, estávamos no meio, apavorados, pensando que não sobreviveríamos. O pior é que os israelenses, em um primeiro momento, não entenderam que éramos brasileiros. Chegaram a nos prender, e só depois viram que não éramos inimigos deles.
Ferrari chora ao lembrar de um episódio em especial: a morte do colega Carlos Adalberto Ilha de Macedo, a única vítima fatal do grupo, um cabo hoje cultuado pelos companheiros como mártir.
– Ele tinha os olhos claros. Tentava falar comigo – relembra Ferrari. – Eu vi que ele tentava perguntar “por que comigo?”, “por que conosco?”. Mas não conseguia. A bala entrou pelo lado direito do pescoço e saiu pela bochecha esquerda. Não saíam as palavras. Era um desespero. Eu e um colega o levamos na maca até a enfermaria, onde ele morreu. Era meu amigo. Uma pessoa boa. Era um anjo, um herói, sempre solidário. Houve ocasiões em que vi ele emprestar a própria roupa para colegas que sentiam frio naquele deserto em que a temperatura variava de 0ºC aos mais de 40ºC. Certamente está no céu.
GUERRA UNIU OS PRACINHAS, QUE MANTÊM CONTATO ATÉ HOJE
As reminiscências costumam ser trocadas em jantares mensais, sem dia exato, que atualmente reúnem algo como 150 pessoas. Primeiro, eles se encontravam no clube Caixeiros Viajantes. Hoje, os repastos se dão no clube Geraldo Santana. Os pracinhas, todos eles gaúchos, costumam dizer que são irmãos.
O Cais do Porto da Capital reunia 3 mil pessoas quando eles voltaram. O local estava repleto de familiares, amigos, autoridades e curiosos.
A recordação da chegada a Porto Alegre, naquele 1º de agosto ensolarado e marcado pelo choro convulsivo de pais, irmãos e namoradas, é descrita ainda em tom de alívio.
A precariedade encontrada pelos pracinhas na guerra é listada pela Unef, basicamente, nestes tópicos: choque psicológico por estar em um local inóspito; dificuldades com o idioma; variação de temperatura entre 50ºC durante o dia e 0ºC à noite; ingestão de água salobra; endemias como lepra e tuberculose; presença de escorpiões, víboras e outros animais peçonhentos; alojamentos precários em barracas de lona, sujeitos a intempéries; campos minados sem o mapeamento ideal; hostilidade da população local; além do próprio fogo cruzado da guerra.
O grupo atribui a sobrevivência de todos, de certa forma, ao então ministro da Defesa israelense, Moshe Dayan. O ataque de Israel e a conquista de Gaza, justamente onde eles estavam, tiveram essa característica de ser cirúrgicos – algo que eles repetem diversas vezes durante a conversa. Mas como era isso? Explicam: as forças israelenses calcularam o instante para determinada inclinação dos raios solares capaz de ofuscar a defesa árabe. Isso foi importante em especial no avanço pelo Mediterrâneo, quando pegaram os egípcios pela retaguarda.
A guerra teve o seguinte cronograma resumido: em 5 de junho, houve as primeiras batalhas, com ampla vitória israelense. A força aérea de Israel destruiu a egípcia, derrubando 319 aviões, perdendo 19 e conquistando grande vantagem. O Sinai, naquele momento, foi ocupado militarmente por Israel, assim como Gaza. Dois dias depois, temendo a aliança sírio-egípcia, Israel avançou em novo ataque preventivo, agora contra a Síria. Conquistou as Colinas de Golã e a Cisjordânia. Em 8 de junho, o Egito aceitou o cessar-fogo proposto por Israel.
CABO ILHA, ÚNICA VÍTIMA FATAL DO GRUPO DE GAÚCHOS, HOJE É CULTUADO PELOS COMO MÁRTIR
A Síria fez o mesmo dois dias depois. Israel festejou a vitória sobre o poderio de Egito, Jordânia e a Síria. O Estado judeu havia iniciado a guerra com 20,3 mil quilômetros quadrados de área sob sua administração. Terminada a Guerra dos Seis Dias, tinha 102,4 mil. Quintuplicou, portanto. Foi com a Guerra dos Seis Dias que Israel passou a ter o controle das Colinas de Golã, da Cisjordânia, da Faixa de Gaza, do Sinai e de Jerusalém Oriental. Ao devolver o Sinai para o Egito, em 1979, Israel conseguiu um acordo de paz histórico.
– Os ataques israelenses são cirúrgicos até hoje. Acho que o Hamas usa escudos humanos, mesmo (coloca civis sobre alvos estratégicos). O número de vítimas poderia ter sido bem maior. Na ocasião, víamos o exército árabe bem de perto. Havia crianças e mulheres armadas, gente até de chinelos de dedo – relata o ex-soldado Pedro Werlang, 70 anos.
José Adiles de Mello, 71 anos, era soldado e motorista. Destaca a precariedade logística do grupo:
– Nosso trabalho era para ser de inteligência, de repassar informações sobre o que víamos. Tínhamos armas muito leves (eram apenas armas para autodefesa, além de binóculos e telefone para se comunicar com os superiores). Não havia jeito de lutarmos, não tínhamos como reagir em caso de necessidade. Achávamos que morreríamos.
Juarez Simões, 70, era soldado e também diz que a lembrança da guerra “é muito presente”. Conta que, ao retornar, todos apresentaram distúrbios como angústia e insônia. Um se tornou indigente e foi encontrado pelo pai na rodoviária de Porto Alegre. Outro passou a falar com passarinhos.
Simões fica especialmente emocionado ao lembrar de um episódio do qual foi protagonista. Ele ia no caminhão de Gaza até o acampamento quando um soldado israelense fez sinal para que parasse. Um grupo de indianos também vinha, na mesma direção. O israelense fez o mesmo sinal, e eles não pararam. Simões ficou observando os indianos seguirem adiante e morrerem na explosão de uma mina que estava logo adiante.
– Aquele soldado israelense salvou a minha vida. Na hora, eu não sabia o que fazer. Dei um abraço apertado nele, e ele também me abraçou forte. Pedi que ele me desse a insígnia dele, e ele me deu. Guardo ela como um símbolo, uma relíquia de guerra e de vida. Nunca mais vou esquecer aquele homem que me salvou – diz, lamentando que, neste meio século que o separam daquela ocasião, jamais reencontrou seu benfeitor.
Hoje, Simões trata de ajudar companheiros de farda. Tem sido um promotor da reivindicação dos pracinhas para os colegas que, aos 70 anos, vivem com renda de até dois salários mínimos.
– Está para ser votado, mas é muito importante. Há um grupo, não sei dizer o número exato, de pracinhas que vivem mal e precisam se medicar, por causa da idade e de tudo o que passamos. Pedimos uma suplementação de dois salários para essas pessoas, que merecem muito. Seriam uma espécie de pensão pelo INSS – explica.
Pedro Werlang sussurra, como se, já sob regime democrático, ainda fosse proibido tocar no assunto:
– Houve a ordem para que zerássemos tudo. Esquecêssemos a guerra que vimos.
O retorno, em 12 de junho, durou quase dois meses. O corpo do cabo Macedo voltou junto, em um caixão de chumbo. Foi acomodado entre eles pelo então cabo Romeo John, hoje com 69 anos. No regresso, até 1º de agosto, passaram por Chipre, Itália (Augusta e Trieste), Marselha e Ilhas Canárias.
ZERO HORA/montedo.com