RESERVA DE AVIÕES DA FAB PARA TRANSPORTE DE ÓRGÃOS SALVA MENINA
Aeronave viabiliza 14 transplantes em três semanas
VINICIUS SASSINE
BRASÍLIA — Os médicos que cuidam de Ana Júlia Aleixo, de 8 anos, já haviam tomado a decisão. Sem alternativas palpáveis, recorreriam a uma máquina para fazer funcionar o coração da menina. A alta dose da medicação não garantia mais as funções mínimas do órgão.
— A durabilidade desse procedimento é de 15 dias. Se falha ou não aparece doador no período, a gente perde o paciente — diz a médica Cristina Afiúne, coordenadora do transplante cardíaco pediátrico do Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (ICDF).
A espera de Júlia por um transplante se aproximava dos seis meses. Nos últimos três, ela estava no grupo das prioridades nacionais, aguardando internada numa UTI do ICDF. A máquina é considerada uma última tentativa de sobrevida, um estímulo artificial às funções do coração, acometido por fibroses decorrentes de uma cardiopatia.
A partir das 2h30m do último dia 20, madrugada de uma segunda-feira, Júlia dispensava qualquer artificialidade para viver. Foi o horário em que começou a bater em definitivo em seu peito um coração novo e saudável. O órgão cruzou os céus de Minas Gerais, Goiás e DF, dentro de um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), para levar vida a Júlia. Às vésperas do transplante, a menina havia deixado de comer, conversar e andar. Uma semana depois da cirurgia, caminha, sorri e faz planos.
— Para o futuro eu penso em muitas coisas. É outra vida, então são muitas coisas legais que eu estou pensando — diz a menina, que colocou tiara e batom discreto para falar com a equipe do GLOBO. A caminhada da UTI até a sala destinada à conversa ela fez praticamente sozinha.
Decreto com força de lei
Os transportes de órgãos para transplante — em especial o coração, o que mais desafia o tempo — eram uma exceção na FAB, como O GLOBO revelou numa série de reportagens publicadas nos dias 5, 6 e 7 deste mês. A Aeronáutica recusou transportar, entre 2013 e 2015, 153 corações, fígados, pulmões, pâncreas, rins e ossos.
Em resposta à revelação feita pelo jornal, no dia seguinte à publicação da primeira reportagem da série, o presidente interino, Michel Temer, editou um decreto, com força de lei, que obriga a disponibilidade exclusiva de pelo menos uma aeronave da FAB para o transporte de órgãos. Antes, a FAB só era obrigada a transportar autoridades.
Em três semanas de validade, os aviões da Aeronáutica fizeram 12 voos para captar 14 corações, fígados e pâncreas, em nove estados, até o dia 27 deste mês, conforme levantamento do Ministério da Saúde e da Aeronáutica. A maioria dos transplantes foi exitosa. Ao longo dos 365 dias de 2015, a FAB atendeu a apenas 24 solicitações de voos. Em três anos, houve 68 “sims” para 153 “nãos”.
Às 17h30m do dia 19, a Central Nacional de Transplantes (CNT) acionou a FAB para buscar um coração em Uberlândia (MG), a 430 quilômetros de Brasília. No topo da lista de espera, quase dependente a uma máquina, estava Júlia. A família de uma criança de 6 anos, que morreu num acidente, tomou a decisão de doar os órgãos.
— Não surgia nenhuma oportunidade. Doação para criança é bem difícil. Eu pensava: “Meu Deus, quando esse coração vai chegar?”. Eu chorava a noite toda — conta a mãe de Júlia, a diarista Maria Aparecida Leite, de 36 anos.
Alegria com o novo coração
Eram 19h quando quatro integrantes da equipe médica do ICDF, dois pilotos e um mecânico da FAB embarcaram na Base Aérea de Brasília, num jatinho Learjet 35, o mesmo que também transporta autoridades. Pousaram uma hora depois em Uberlândia. Às 23h, o avião decolou rumo a Brasília. Chegou 40 minutos depois. A cirurgia terminou às 2h30m.
Naquele dia, o piloto Vitor Almeida Freitas, de 31 anos, integrava a tripulação que fica de sobreaviso por 24 horas na Base Aérea. Coube a ele planejar os voos de ida e volta e pilotar o jato.
— Assim que eles chegam com o órgão, temos de estar prontos para acionar o motor. Existe uma motivação grande em fazer parte desse processo de salvar uma vida, de ser útil a alguém. Estreitamos as distâncias — afirma o tenente.
A distância relativamente curta entre Uberlândia e Brasília deu mais tranquilidade ao trabalho da equipe. O coração tem apenas quatro horas para sair de um peito a outro. Os fatores logísticos, para além da falta de avião nas rotas interestaduais, levaram o sistema de transplantes a deixar de aproveitar 982 órgãos em cinco anos, entre 2011 e 2015, como revelou a segunda reportagem da série publicada pelo GLOBO no começo deste mês.
Júlia foi para a cirurgia “emocionada”, como ela conta:
— Eu fiquei emocionada (quando soube que ia ganhar um coração novo). Era ruim antes do transplante. Eu via as pessoas correndo, brincando e eu não podia fazer nada. Aí ficava triste. Eu queria agradecer muito a quem decidiu doar. Foi muito corajoso.
A menina se recupera bem. Os médicos planejam para hoje a saída da UTI e mais 20 dias numa enfermaria, até receber alta. As chances de rejeição ao coração novo, maiores nos primeiros seis meses, variam de 30% a 40%.
— Ela não tem nenhum sintoma clínico ou ecocardiográfico de rejeição. Se tudo correr bem, terá vida normal, vai poder correr e brincar — diz a médica Cristina.
Júlia mora com os pais e três irmãos em Luziânia (GO), no entorno do DF. O pai vende picolé e água na porta de ministérios, entre eles o Ministério da Saúde. A família precisa pintar a casa e retirar o mofo para receber a menina de volta.
O sistema de transplante no Brasil é praticamente todo feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que responde por 95% dos procedimentos. Foi assim com o tratamento de Júlia, custeado pelo SUS. É um dos maiores sistemas públicos do mundo, com 23,6 mil transplantes em 2015. Somente com a medicação imunossupressora, destinada a 71,1 mil transplantados, o SUS gastou R$ 362 milhões em 2015, conforme o Ministério da Saúde. Mas falhas ocorrem, numa área sensível em que se corre contra o tempo.
Agora, outra Ana Júlia, de 7 anos, está na fila de espera em Brasília. Por conta de uma cardiopatia congênita, ela já fez cinco cirurgias cardíacas. O aniversário da menina é no próximo dia 13.
— Ela falou que vai ganhar um coração de aniversário — diz a médica do ICDF.
8 corações, 4 fígados e 2 pâncreas
O uso exclusivo de pelo menos uma aeronave da FAB para o transporte de órgãos mostrou, nas primeiras três semanas de validade do novo decreto, a importância desse recurso para o transplante de coração. Dos 14 órgãos transportados, oito são corações. Os outros são quatro fígados e dois pâncreas. O tempo de isquemia do coração é de apenas quatro horas, período em que pode ficar sem irrigação sanguínea, até ser deslocado de um peito a outro.
Os corações foram buscados em Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais e Pernambuco. Os receptores estavam em grandes centros transplantadores em São Paulo, Paraná, Brasília e Pernambuco. O GLOBO identificou que pelo menos três dos oito pacientes tinham menos de 21 anos de idade. O transplante se mostrou inicialmente exitoso no caso dos três. Um jovem de 20 anos internado em São Paulo recebeu um coração captado por um avião da FAB em Florianópolis no dia 24. A distância percorrida foi de 700 quilômetros.
Dois dias antes, uma aeronave fez um transporte dentro de um mesmo estado, Pernambuco, o que não ocorria. Um coração deixou Petrolina e seguiu para Recife, separadas por mais de 700 quilômetros. A receptora foi uma adolescente de 14 anos. “O transplante foi bem-sucedido. Normalmente, acionamos o táxi aéreo do estado. No entanto, devido à urgência, a central decidiu solicitar à FAB, que atendeu a demanda prontamente”, informou a Secretaria de Saúde de Pernambuco, por meio da assessoria de imprensa.
Ana Júlia Aleixo, de 8 anos, recebeu em Brasília o coração captado em Uberlândia (MG). Outros dois órgãos, buscados em Goiânia e em Campo Grande, foram transplantados em adultos na capital federal.
Em pelo menos três casos não houve êxito no transplante. São os casos de dois fígados levados para Recife e Fortaleza, que acabaram não aproveitados, e de um coração transportado de Navegantes (SC) para Curitiba. Neste caso, a receptora “não evoluiu bem” e morreu após o transplante, segundo a Secretaria de Saúde do Paraná. Já o transplante de um coração e um pâncreas num hospital em Campina Grande do Sul (PR), no dia 18, foi bem-sucedido, e os pacientes já tiveram alta do hospital, conforme a secretaria.
— O sistema já melhorou muito e hoje é robusto. Sou testemunha ocular disso desde 1997, quando se instituiu o Sistema Nacional de Transplantes, com uma lista única de receptores por órgão. É preciso conseguir o máximo de azeitamento entre todos os atores envolvidos, com um trabalho concatenado. O decreto veio valorizar e garantir o que a FAB já fazia — diz Maria Inez Gadelha, diretora do Departamento de Atenção Especializada e Temática do Ministério da Saúde.
“O transporte de órgãos é motivo de orgulho para a FAB. Ajudar a salvar uma vida alenta o coração, traz sentido à jornada e é combustível não só para a realização profissional, mas também pessoal”, diz a Aeronáutica. A FAB afirma ainda que continua a priorizar o tráfego de aeronaves comerciais que transportam órgãos.
O GLOBO/montedo.com