"Vi crianças no telhado pedindo socorro", diz militar brasileiro no Haiti
Janaina Garcia
Do UOL, em São Paulo - Cidades arrasadas, com estradas e acessos por reconstruir; milhares de centenas de mortos; comboios com alimentos atacados por gangues e por pessoas em situação de desespero; vegetação arrancada como que com a mão. A passagem do furacão Matthew pelo Haiti, na semana passada, gerou um cenário desolador até para quem, em tese, é treinado para lidar com esse tipo de tragédia.
O general brasileiro Ajax Porto Pinheiro, comandante das forças de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) no Haiti, viu o país ser atingido em cheio bem no dia em que completava um ano de missão humanitária. Aos 60 anos, casado e pai de três filhos, Pinheiro foi nomeado para o posto pelo secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, em outubro do ano passado.
Em entrevista ao UOL, o comandante falou da capital Porto Príncipe, por telefone, sobre como estão os trabalhos de reconstrução coordenados pela força de paz que ele lidera, da qual participam militares de 19 países. Entre hospitais de campanha, helicópteros e batalhões de engenharia, o general afirma que a ajuda internacional até chega, mas "em torno de 20%" do volume observado, por exemplo, no terremoto de 2010.
O furacão Matthew foi o mais forte a atingir o Caribe desde 2007, e com uma proporção de estragos maior no Haiti, país mais pobre das Américas.
"Existe essa solidariedade internacional; a ONU disse que os países precisam apoiar mais o Haiti, mas é fato que, no que se refere ao Haiti, não é como um drama na Europa; não é aquela grande comoção internacional", disse o comandante.
Leia, a seguir, a entrevista.
UOL -- Uma semana depois do furacão, quais as principais dificuldades que a missão de paz que o senhor comanda pela ONU enfrenta no Haiti?
Ajax Porto Pinheiro -- São algumas frentes que estamos atacando. Uma delas é a segurança dos comboios que levam alimentos e bebidas, já que a área atingida está muito distante da capital, em torno de 200 a 250 km -- mas com estradas muito ruins --, e tem havido ataque de gangues e da própria população. Ao chegarem aos principais pontos de concentração, como Les Anglais e Jeremie, partem em comboios menores. Hoje [ontem], mesmo, o maior comboio de alimentos, com 25 carretas, saiu às 5h com uma companhia de cem fuzileiros a escoltando, ou não chega. Há dois dias, em Port Salut, a WFT (sigla em inglês para Programa Alimentar Mundial, da ONU) fez o transporte de dois caminhões e a carga foi roubada. Eles não estavam com a nossa proteção. Quem gerencia isso é a ONU, que coordena o processo com todas as ONGs, e nós participamos disso. Essa coordenação é feita de forma descentralizada.
Outro desafio é chegar o mais rápido possível nos locais de entrega desses suprimentos -- as pessoas que necessitam da ajuda não querem saber da burocracia; quanto a nós, vamos falando por rádio, WhatsApp, telefone, para conseguir executar o trabalho. Além disso, temos atuado para abrir eixos que foram bloqueados por deslizamentos de terra ou destruídos pelas ondas e pelos ventos. Chegar a locais isolados o mais rápido é uma grande dificuldade, ainda mais que o tempo está passando e sabemos que ainda há várias comunidades isoladas.
Esta semana a República Dominicana tem uma reunião com o governo do Haiti para decidir que equipamentos, máquinas e companhias de construção podem ceder ajuda --porque a capacidade da missão, nesse sentido, hoje tem essa limitação.
UOL -- Como está organizado o trabalho, levando-se em conta a queda de contingente em comparação ao terremoto de 2010?
Pinheiro -- Na fase em que estamos, houve uma diminuição muito grande da tropa, que tem integrantes do Exército de outros 18 países. Em 2010, por exemplo, no período pós-terremoto, chegaram 12 mil militares; eu era um dos comandantes. Depois, houve uma diminuição gradativa, até julho do ano passado, e, com esse corte, chegou-se agora a 2.370 militares. Pelo Brasil, temos 970 homens, juntos, provenientes de uma companhia de engenharia e um batalhão de infantaria do Exército (este, com 850 homens), além das tropas de fuzileiros navais da Marinha. O restante dos 2.370 militares está distribuído em mais oito tropas, com um batalhão do Chile, no centro do país, com tropas do Uruguai e do Peru, no nordeste, além de militares do Paraguai, da Guatemala e das Filipinas, um hospital de campanha argentino, uma unidade de aviação chilena com helicópteros pequenos, uma unidade de aviação de Bangladesh, com três helicópteros grandes, russos, e militares de México, Canadá, Estados Unidos, Nepal, Equador, Jordânia, Sri Lanka, Butão, El Salvador e Honduras. Essas tropas têm suas responsabilidades em áreas distintas do país, e, no caso da tropa brasileira, ela está exatamente na região atingida pelo furacão.
UOL -- Há um critério de prioridades para se atender quem foi atingido pelo furacão?
Pinheiro -- Quem estabelece as prioridades são a ONU e as ONGs de ajuda humanitária. Há reuniões permanentes sobre isso na cidade de Les Cayes, nas quais definem o que vai ser prioridade. Não somos nós que definimos, apesar de termos a noção da tragédia; o importante é ir nessa direção.
No dia do furacão, fazia um ano que eu estava nessa missão humanitária. É o segundo problema que enfrento dessa natureza: em 2010, em janeiro, cheguei na semana seguinte ao terremoto. Todo esse drama humano e essa logística eu vivi em 2010 -- é como um filme que está repetindo.
UOL -- Quando o senhor fez os primeiros sobrevoos nas áreas afetadas pelo Matthew, o que pôde observar? E qual o sentimento em uma situação dessas?
Pinheiro -- Sobrevoei as áreas mais isoladas no dia seguinte em um helicóptero de portas abertas. A sensação de tristeza é a mesma do terremoto -- com aquelas cidades que eu tinha conhecido, para fazer um conhecimento operacional; uma igreja onde eu havia entrado em janeiro... Tudo em volta dela foi destruído, as casas todas foram destruídas, não sobrou nada. As pessoas, quando nos veem, acenam e pedem socorro --é chocante e uma tristeza muito grande se deparar com esse desespero.
Uma cena que eu não esqueço: passamos próximo a uma das áreas atingidas e vimos várias crianças em cima do telhado de uma casa pedindo socorro. Por pouco não foram levadas, porque a casa ficava perto da beira do mar. O que nos cabe, nessas horas, é segurar a emoção e tentar resolver o problema. Seja marcando o lugar para as tropas voltarem, e elas voltam [para o resgate], seja abrindo eixos de acesso ou garantindo que os comboios cheguem com alimentos e remédios.
O que não dá é para ficar com burocracias nessas horas. No caso desse furacão, estávamos posicionados na área dois dias antes, a 80 km do olho do furacão. Até 50 km, ele destruiu tudo como uma tempestade tropical de ventos muito, muito fortes. Como os militares estavam atrás das montanhas, se protegeram e avançaram no dia seguinte.
A natureza no terremoto foi ingrata quando escolheu a área mais vulnerável para atingir o país, em 2010, e agora não foi diferente com o furacão. Com telhados de zinco, as casas foram como que varridas do chão, o telhado decepou muita gente, as árvores caíram sobre as casas... O Matthew atingiu agora a área onde ele poderia ser mais letal, o Sudoeste. Em 2010, o terremoto ocorreu onde havia mais casas com lajes -- e elas viraram praticamente túmulos.
UOL -- É possível estimar em quanto tempo o Haiti se recupera de mais um desastre natural como esse furacão?
Pinheiro -- A recuperação vai demorar. Porque podemos até reconstruir estradas, liberar eixos de acesso, mas virão chuvas e deslizamentos -- estimamos que só de escolas, que são estruturas mais firmes, como as igrejas, ao menos 300 foram destruídas dessa vez. E elas seriam usadas como locais de votação para as eleições marcadas no país; vários outros locais foram atingidos.
Urnas e material eleitoral foram atingidos, mas toda uma área verde, com animais e plantações, no país, foram destruídos. Os ventos tiraram árvores do solo como se tira capim; árvores centenárias foram jogadas cinco, dez metros à frente; plantações de banana foram totalmente destruídas, e animais como porcos, cabritos e galinhas morreram. Nada ficou sobre o solo. Algumas pessoas simplesmente não tinham para onde ir, algumas comunidades não receberam o aviso de evacuação das áreas e foram jogadas contra a parede... Vai ser uma recuperação demorada. E a reação do Estado haitiano é lenta. Só a ONU calcula que serão necessários US$ 120 milhões a essa recuperação.
UOL -- O senhor sente, por parte da comunidade internacional, um sentimento de empatia pelos afetados pelos desastres naturais no Haiti na mesma medida que o sentimento a países europeus alvo de terrorismo -- como a França?
Pinheiro -- Vejo que a comunidade internacional busca ajudar o Haiti -- que tem problemas tão graves e se isola para resolvê-los --, manda transporte, recursos, doações... Não é muita coisa, como no terremoto de 2010, mas está havendo um movimento internacional para apoiar o país.
Existe essa solidariedade internacional; a ONU disse que os países precisam apoiar mais o Haiti, mas é fato que, no que se refere ao Haiti, não é como um drama na Europa; não é aquela grande comoção internacional.
UOL/montedo.com