7 de junho de 2016

'Depois do que vi, acho que a Humanidade não deu certo', diz Luciano Huck sobre Haiti

LUCIANO HUCK*
Ele estava completamente nu. Não tinha mais do que 4 anos. E nu, brincava no meio do esgoto, descalço, na companhia de três ou quatro porcos que faziam o mesmo.
Longe de casa? Não, ele estava a menos de 15 metros da porta. Lá sua mãe cozinhava — não na calçada, porque ali nem havia calçada — mas do lado de fora do casebre, uma sopa na qual nem os porcos pareciam interessados.
O cheiro de tudo aquilo era indescritível, nunca havia inalado nada parecido. Algumas poucas cabras também circulavam por ali. Curiosamente, ratos e urubus não. Como não tinham “donos”, os exemplares dessas aves devoradoras de lixo e os roedores da região já foram comidos pela população.
O menino parecia feliz, sorria. Afinal, ele estava em casa e próximo da sua família.
Escrevo este texto, distante no máximo 5km de onde aquele menino deve estar dormindo agora.
O sono dos justos, em uma casa paupérrima e sem energia elétrica. Nada mais injusto.
Estou sob um mosquiteiro, num confortável alojamento do Brabat 23, o 23º Batalhão do Exército Brasileiro. Onde? Em Porto Príncipe, capital do Haiti.
Vim para ver e tentar entender o que o Brasil está fazendo aqui. E senti orgulho. Confesso que foi a única coisa que me trouxe algum sentimento positivo nesses últimos dias. Mas volto a este assunto mais à frente.
Peço desculpas por talvez carregar um pouco na tinta das próximas linhas, mas estou com o estômago embrulhado. E não é por causa do esgoto, do cheiro, dos porcos, do lixo… nada disso. Depois de tudo o que vi hoje, em Cité Soleil, uma favela com mais de 300 mil habitantes à beira do maravilhoso mar turquesa do Caribe, acho que definitivamente a Humanidade não deu certo. Falhamos.
Não é justo alguém viver naquelas condições. E não estou nos sertões africanos, onde a miséria toma conta de boa parte do território continental. Bem ao contrário, estou a uma hora de voo da maior e mais rica economia do mundo. Não dá tempo nem de ouvir a narração de uma partida de futebol durante a viagem. Os Estados Unidos estão logo ali na esquina.
Em função do meu trabalho, e do prazer que tenho em ouvir e tentar ajudar a encontrar caminhos, já entrei e vivi experiências riquíssimas em favelas encravadas em todas as regiões do Brasil; Norte, Nordeste, Sul, Sudeste… mas nunca vi nada sequer parecido com o que vi e vivi hoje no Haiti.
Se em 2010, depois do terrível terremoto que matou mais de 200 mil haitianos, você fez alguma doação destinada à reconstrução do país caribenho, muito provavelmente seu dinheiro foi roubado. Porque aqui nada foi reconstruído. Começando pela dignidade humana.
O sentimento é de que deveríamos dar um restart no mundo. Começar de novo.
Entender que o mundo mudou. Que a informação que viajava na velocidade de um cavalo há 200 anos hoje trafega de mão em mão, de celular em celular, mais rápido que o pensamento.
Não podemos acreditar que fronteiras geopolíticas justifiquem a miséria absoluta, nem aqui nem logo ali. Que aquele menino cresça naquele ambiente, naquela sujeira, naquela miséria e que não possamos fazer nada por ele. Que mais uma vez a política só cuide de alguns. Ou pra ser mais preciso, do bolso de alguns.
Faltam lideranças com pensamentos de fato modernos, de fato inclusivos, de fato transformadores. Espero que a minha geração possa viver a era da transformação verdadeira, mas neste momento estou descrente, não vejo este caminho nem rascunhado. Nem aqui no Haiti, nem no Brasil, nem nos EUA, nem no mundo. Você acredita que alguém como Donald Trump possa inspirar o mundo nessa direção? Eu não.
Mas como estou indo dormir, preciso arejar os pensamentos com coisas positivas, então volto ao 23º Brabat, o batalhão do Exército brasileiro que participa da Missão de Paz da ONU em território haitiano.
Como disse, foi a única coisa boa que encontrei por aqui. Senti orgulho da nossa bandeira. Tive orgulho de ser brasileiro. Um grupo de 856 cidadãos, brasileiros e brasileiras, com uma média de idade de cerca de 23 anos, voluntários no meio desse caos. Pessoas que deixaram filhos, mulheres, pais e mães, famílias inteiras, para servir a uma pátria que não é a deles. Entendendo que na verdade não há pátria que não seja o planeta e a Humanidade. Para ajudar. Para tentar trazer luz a este apagão social.
Eu vi, com meus próprios olhos, o carinho que a população escancara na presença dos nossos soldados.
Nossos meninos vestidos de soldados frente a frente com aquele menino nu. Todos sorrindo.
Sigo minha missão, empoderando através da TV, aqueles que até então estavam fora dos radares.
No caso do Haiti, os soldados brasileiros, que bravamente aplacam o sofrimento local.
Produzimos mais de 12 horas de um riquíssimo material jornalístico, que em breve irá disseminar nos lares brasileiros uma mensagem positiva e de esperança.
Vou dormir. Espero algum dia acordar em um mundo mais justo. Pode parecer piegas, e é. Mas não é utopia.
*Apresentador de TV
O Globo/montedo.com

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